Carta-protesto em homenagem ao dia do jornalista

Há alguns anos, o jornalismo não era tão valorizado. As audiências das emissoras de TV, abertas e pagas, dos sites dos jornais e das rádios há muito tempo não eram tão robustas. As pessoas voltaram a consumir jornalismo porque querem ter acesso a informações credíveis, não se contentando apenas com o que disse o primo da amiga da vizinha.
Essa revalorização, porém, não significa que os ataques ao jornalismo cessaram. Os ataques persistem, partindo inclusive de onde menos se espera, das redações dos jornais.
Um exemplo vem, mais uma vez, da redação do jornal O Povo (Fortaleza-CE), que, ainda na primeira semana do distanciamento social proposto para restringir a disseminação do coronavírus, na segunda metade de março de 2020, demitiu muitos jornalistas. Alguns, inclusive, com décadas de casa, prêmios e imensos serviços prestados à sociedade.
Neste 7 de abril, temos que aplaudir os profissionais que seguem nas ruas, arriscando a sua própria vida e a dos familiares, para levar informação aos cidadãos. Devemos aplaudir aqueles que continuam fazendo plantão na frente do Palácio do Alvorada, ao mesmo tempo em que lamentamos quando estes são categoricamente ignorados ou alvos de xingamentos, como se fizessem parte de uma esquete de humor de quinta categoria encenada por quem ocupa a Presidência da República. Devemos aplaudir aqueles que, de casa, em meio aos cuidados com os filhos, com os pais e outros familiares, e ainda com toda a preocupação em relação ao que acontece no resto do mundo, seguem à busca de informações, muitas vezes sem qualquer apoio das empresas de comunicação para pagar energia, internet, ligações telefônicas, e mesmo assim mantendo o compromisso máximo com a apuração rigorosa, com a ética e com o interesse público.
Este é um dia para ser, sim, celebrado, mas também para protestarmos e para refletirmos sobre formas mais sustentáveis e menos mercadológicas de garantir a produção jornalística de forma perene e consistente. Essa reflexão já foi iniciada por instituições como o Intervozes e por pesquisadores da área de jornalismo, mas precisa ser definitivamente abraçada pela base, com o fortalecimento dos sindicatos que envolvem a categoria. Nas universidades, também devemos fazer mais, ao não só focar na formação de jornalistas para as redações, mas para pensar na produção e gestão da comunicação de uma maneira bem mais ampla, quiçá focando na comunicação pública, que não significa comunicação de um governo, mas sim de toda a sociedade, ao ser regulada pelos cidadãos.
Neste dia do jornalista, aplaudamos a essência dessa prática, que é trazer à tona relatos relacionados a acontecimentos de interesse social que são fundamentais para podemos refletir sobre os rumos das nossas vidas, sobre o que queremos para o futuro, sobre o que deve ser feito coletivamente. Que o jornalismo voltado para o interesse privado, focado no mercado, nos altos e baixos das bolsas, perca espaço e seja cada vez mais uma exceção. Que esta pandemia seja uma boa oportunidade para que se evidencie o quanto a sociedade precisa e gosta do jornalismo voltado ao interesse público, preocupado com as pessoas que age em direção à busca pela justiça social, não pelos ganhos financeiros de meia dúzia de ricaços. Precisamos do jornalismo e vamos lutar por ele.

Nem à direita, nem à esquerda: a agenda da favela

Mesmo com toda a promessa da internet de democratizar o acesso à comunicação, o cenário midiático não é dos mais animadores, com uma forte e contínua concentração dos meios de comunicação nas mãos de poucos conglomerados, que criam estruturas que aparentam estimular a liberdade de expressão, mas que na prática exercem um intenso controle de tudo o que é publicado. Sim, mesmo que aparentemente tenha sido iniciado um movimento em que as audiências passaram a se dispersar em diferentes canais, seguindo a tendência de segmentação dos públicos, a imensa maioria das pessoas continua concentrada nas mãos da Globo, da Record, do SBT e companhia limitada – mundo afora, isso não é lá muito diferente.

Mas uma coisa não dá para negar: uma pequena revolução acontece, aos pouquinhos, em diferentes espaços sociais, especialmente nas periferias, por meio de iniciativas de comunicação alternativa comunitária.

Um dos “laboratórios” dessa revolução tem sido as favelas do Rio de Janeiro, onde a violência é mostrada pela mídia tradicional apenas em números e pela voz das autoridades policiais. Mortes causadas pela repressão policial são narradas como resultado de confrontos com troca de tiros, mesmo quando não há provas dos tiros trocados. Pessoas mortas viram suspeitos e normalmente suas histórias são apagadas. O morador é silenciado, só existindo quando há muito choro, comoção, e suas lágrimas motivam cliques.

Os grupos de mídia alternativa de favela nascem da constatação dessas distorções, mas não só por isso: pela necessidade de produzir informação relevante para os moradores da favela, sobre a favela, que não se restrinja a aspetos negativos do cotidiano, mas também tratem de serviços, deem espaço para que pessoas relevantes do local sejam conhecidas e reconhecidas, e mesmo situações que já são noticiadas pela mídia tradicional sejam divulgadas com maior precisão e na dimensão correta.

A experiência de coletivos de comunicação alternativa foi narrada por três expoentes do mídia-ativismo de favela do Rio de Janeiro, Raull Santiago, do Coletivo Papo Reto, Rene Silva, do Voz das Comunidades, e Buba Aguiar, do coletivo Fala Akari (inclusive eu tenho falado sobre o trabalho do Papo Reto há algum tempo, como neste post). Os três estiveram presentes a uma mesa redonda sobre as narrativas da favela, realizada no Centro Cultural Belchior, na Praia de Iracema, no dia 19 de novembro de 2019. O evento, que contou ainda com Kdu dos Anjos (Centro Cultural Lá da Favelinha, MG), Talmon Lima (La Casa du’z Vetim, CE) e Gab Savir (GhettoRoots, CE), além de Preto Zezé (CUFA), não teve a cobertura de nenhum meio de comunicação – o que comprova o quanto falar sobre favela segue sendo um assunto marginalizado e invisibilizado pela mídia convencional.

Uma selfie minha com Rene, Raull e Buba

A conversa foi longa, abrangendo o diagnóstico da situação de exclusão das periferias pelo país afora, mas sobretudo apresentando estratégias de empoderamento e fortalecimento da organização de base das comunidades, passando inclusive por questões relacionadas à política-partidária.

Em resumo, os palestrantes reforçaram o quanto a favela representa uma enorme potência, de capital social e econômico, sendo fonte de projetos que podem gerar muita renda a partir da cultura que naturalmente já que é difundida pelos moradores locais; mas também o quanto essa potência é boicotada pela ausência de políticas públicas e pelo foco do Estado em insistir na guerra às drogas, que na verdade se converte em uma política de extermínio dos moradores. “Temos que provar até a nossa morte”, disse Raull Santiago, ao se referir à morte de Ágatha Felix, de 8 anos, no Complexo do Alemão, por um tiro de rifle disparado por um policial. O governo do Estado do Rio de Janeiro e seus apoiadores tentaram se esquivar da responsabilidade, atribuindo a bandidos a morte da menina, mas um laudo pericial acabou por comprovar o que os moradores diziam desde o primeiro momento, que a bala foi oriunda de uma arma disparada pela polícia, mesmo sem que houvesse qualquer ameaça no local.

Por sinal, não é de hoje que a violência de Estado assombra os moradores de favelas, nem é exclusividade de um governo de direita – ainda que a situação tenha piorado. Por isso, as falas reforçaram uma posição de autonomia dos movimentos sociais embrenhados nas favelas: nem à direita, nem à esquerda, o que os ativistas defendem é a agenda da favela, que precisa ser pensada em toda a sua complexidade, que inclui, por exemplo, a forte presença das igrejas evangélicas. “Não dá para negar que as igrejas estão dentro das comunidades e que exercem grande influência, mas também levam serviços”, discorreu Raull.

O trabalho de base é apontado como única saída para transformar a realidade social das favelas, a partir de ações que surjam de dentro das próprias comunidades, não de fora, como benesse de parte das elites. “Não queremos receber ajuda de ninguém, queremos trocar”, ressaltou Kdu.

Uma das maneiras de articular as bases é pelos meios de comunicação alternativa, porém isso nem sempre é financeiramente viável. Perguntei a Raull, Rene e Buba se dá para pagar as contas apenas atuando como comunicador alternativo, e os três apontaram sérias dificuldades para isso. Raull e Buba têm outros trabalhos, Rene não, e disse que, depois de muitos anos de luta, consegue se dedicar só ao Voz das Comunidades. De todo modo, para Buba, atuar na comunicação alternativa ajuda a abrir portas, além de ser uma das formas mais potentes de gerar protagonismo dentro das comunidades mais vulneráveis e, com isso, levar a transformações sociais.

Aproveitei para gravar em vídeo um pouco do que pensam esses três importantes comunicadores e ativistas, para saber o quanto a mídia alternativa pode ser transformadora. Também pedi que cada um mandasse um recado aos estudantes de jornalismo. Os trechos das entrevistas seguem a seguir (deem um baita desconto para as imagens sem foco, culpa exclusiva desta cinegrafista amadora).

Essa tal objetividade jornalística (2): tabu a ser desconstruído

Texto sobre um dos maiores tabus do jornalismo, a objetividade jornalística.

Das coisas que descobri ao longo do doutorado: é necessário ter sangue frio para criticar os cânons do jornalismo, porque, ao fazer isso, saiba que virá artilharia pesada contra si por parte de pesquisadores da área. Todos reclamam da profissão, das empresas, fazem críticas a matérias, mas no fim das contas, querem que tudo se mantenha quase do mesmo jeito, com mudanças apenas dos “donos” dos meios.

Um desses cânons intocáveis que ganhou proeminência nas últimas semanas é o da imparcialidade. Bastou o The Intercept Brasil lançar uma série de reportagens sem ouvir o “outro lado” (a série Vaza Jato) e usando termos mais diretos para descrever o que estava divulgando, como algo criminoso, para que vozes analíticas, em coro com uma parte do senso comum, passassem a apontar distorções do bom jornalismo, por ser militante, ativista, ou seja, não isento e, portanto, não profissional. Há também muitos defensores da postura do grupo jornalístico (entre os que me incluo), mas vejo que muitos que elogiam a publicação não são exatamente da área do jornalismo: são da antropologia, das ciências políticas, da sociologia, da filosofia. Sem ser acadêmicos, há também jornalistas que defendem a postura do site, mas gente que já assumiu, cotidianamente, uma posição mais opinativa, e até por isso combate a hipocrisia.

Mas acho que o conceito mais intocável nesse campo, ainda hoje, é o da objetividade jornalística. Eu já sabia que fazer a crítica a esse ideal seria como mexer em um vespeiro, mas mesmo assim resolvi arriscar, e lá está ele na minha tese (ainda não defendida e, por isso, não publicada). Não é o conceito central, mas não deixa de ser um dos mais relevantes, pois é parte do coração do jornalismo profissional tal qual o conhecemos. Essa semana, ao apresentar parte da minha pesquisa no Seminário Permanente de Comunicação e Diversidade do CECS (Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade), da Universidade do Minho, onde realizo o doutorado, meu posicionamento foi alvo de uma saraivada de críticas da professora Sylvia Moretzsohn, de quem sou fã e respeito enormemente, e na ocasião não consegui responder adequadamente (cheguei à conclusão de que até na minha tese isso não está bem esclarecido e vou mexer no texto para me expressar melhor). Por isso, aqui vai mais uma reflexão sobre o tema.

Eu e a professora Sylvia Moretzsohn durante o seminário. Foto do Fábio Marques

O jornalismo tomou a forma que conhecemos no início do século XX, e no Brasil isso aconteceu um pouco mais tardiamente, com a separação clara entre informação e opinião, e com a aplicação de certos procedimentos no tratamento da notícia, tendo como objetivo maior apresentar o fato o mais próximo da realidade.

A ideia é a seguinte: há um acontecimento, presenciado por inúmeras testemunhas, que o veem a uma certa distância e, por isso, cada um tem um ponto de vista diferente. O jornalismo, ao utilizar certas ferramentas (como entrevistas, pesquisa documental e uso de imagens), a partir de uma certa postura (isento, imparcial e neutro, interessado unicamente em buscar a verdade), age como se aplicasse uma lente de aumento em relação a esse acontecimento, que o aproxima do fato, mesmo que não estivesse presente no momento em que o fato se deu. Essa lente, que condensa diferentes pontos de vista, imagens e documentos, tem como pretensão maior não reproduzir o acontecimento, mas apresentar a versão mais verdadeira possível do fato. Essa lente é o que passou a ser chamado de objetividade jornalística.

O problema, já notado nos anos 1970 por pesquisadores como Stuart Hall, é que essa lente tem filtros que determinam o que será visto (e mostrado) e o que não será. E não apenas: essa lente determina como o acontecimento será visto e mostrado. Entre esses filtros estão valores notícia que hierarquizam os sujeitos, as instituições e as relações sociais, e que estabelecem o que é mais importante e o que é menos importante. Mais do que isso, entre esses filtros se escondem ideologias, afinal o texto jornalístico é um tipo de discurso, e como todo discurso está embebido por traços ideológicos, mesmo quando não se percebe claramente isso.

Um exemplo bem recente (e até explícito para muita gente) é a cobertura da reforma da previdência (entre os media tradicionais brasileiros). A abordagem de todos os jornais parte do pressuposto de que a reforma é necessária, dada a situação financeira do governo, de déficit crescente. Nesse sentido, são aplicados todos os procedimentos padrão estabelecidos pela objetividade: levantamento de dados, escuta de especialistas, declarações de governistas e da oposição. Só que não se problematiza o que deveria ser o mais óbvio: o ponto de vista de que a máquina pública não pode ter déficit, tem de ser superavitária, e que diante das perdas de receitas é necessário fazer “cortes” para reequilibrar as contas públicas. Esse ponto de vista é pautado na ideologia capitalista neoliberal, que preconiza o Estado mínimo, e certamente não é o único pensamento possível sobre a atuação do Estado na sociedade.

Como esse tipo de cobertura poderia ser diferente? Por exemplo, ouvindo pessoas comuns. Gente cuja família depende da aposentadoria para viver. Donos de comércios locais que contam como o ingresso das aposentadorias é vital para o seu sustento. Outra forma é sair do lugar comum, e das fontes viciadas que são sempre acionadas, e buscar especialistas que defendem outras posições. Dar realmente espaço à oposição e problematizar o que argumentam, não apenas lançando entre aspas como um “outro lado”.

Só que, na prática, o modelo normativo da objetividade fez com que a rotina de trabalho passasse a reproduzir certas práticas, que passaram a ser cultivadas como se fossem as únicas certas e possíveis. A precarização do trabalho do jornalista, intensificada com a crise sem precedentes do setor, torna essa mecanização ainda mais grave, já que impede que os jornalistas na ativa tenham tempo de pensar. Reproduzir, assim, é bem mais fácil.

Mesmo assim, a objetividade está lá, santa e intocável. E é acionada por todos os lados, tanto por quem age com a melhor da boa-fé, tentando mesmo produzir um jornalismo de qualidade, como por aqueles que querem plantar mentiras, mas sob o manto da técnica e das boas práticas. Sim, é possível simular a objetividade jornalística, porque no fim das contas o discurso jornalístico é performativo (já falei disso antes), por ter de se materializar discursivamente, e o que importa é muito mais o que ele parece ser. Parecendo direto, isento, excluindo todo tipo de adjetivo e até advérbios, apresentando declarações, documentos e imagens, tcharan: “eis um bom trabalho jornalístico”, mesmo não sendo. Muitas das fake news se utilizam desse expediente para se disseminar e certamente é por isso que são tão facilmente difundidas, afinal, se parecem com notícias, são notícias, e são verdade.

Por essas e outras, considerei desde o início da minha pesquisa que eu deveria mexer sim nesse vespeiro e minimamente problematizar esse ideal, para até, quem sabe, negá-lo. Fazer a crítica, porém, não significa pregar negação da realidade, nem muito menos negar a busca pela verdade, como meta maior do jornalismo. Não, caso contrário não é mais jornalismo. Fazer a crítica e até propor que se pense um jornalismo fora da caixa da objetividade é em grande medida deixar claro que essa performance da objetividade (nem que seja decorrente da maior precisão possível) não é suficiente para retomar a confiança que jornalismo perdeu nos últimos anos. Fazer a crítica é entender que mais do que a preocupação em simplesmente apresentar um relato frio e descritivo, baseado em declarações e números, está na hora do jornalismo se expor e mostrar seus procedimentos, suas decisões e motivações. Fazer a crítica é ressaltar a urgência em dar transparência ao relato jornalístico, ainda que isso aparentemente o enfraqueça em um primeiro momento (afinal, a verdade relatada poderá ser refutada a partir da exposição dos procedimentos adotados, que poderão ser questionados). Como já está acontecendo, certamente essa transparência, com o tempo, irá fortalecer os jornalistas que assumirem posicionamentos claros, sem deixar de produzir um jornalismo de excelência, que não só informe, como também emocione, gere empatia e adesão a causas sociais. Afinal, querendo ou não, os jornalistas e outros atores que compõem o espaço público mediático são atores políticos, querendo ou não, que mesmo sob o manto da objetividade interferem enormemente nos rumos que tomam as relações sociais e nas tendências que mantêm ou transformam as estruturas sociais. Assumir esse papel político (não confundir com partidário) é assumir um protagonismo no debate público que pode culminar com a retomada da relevância do jornalismo. Negá-lo é abrir espaço definitivamente para que robôs façam o serviço (que, ainda assim, continuará tendo um viés, afinal a programação de algoritmos é feita por humanos e suas visões de mundo).

Em defesa do jornalismo ativista: o caso #VazaJato, do The Intercept

Desde que o The Intercept Brasil começou a trazer à tona trechos de um vazamento de conversas entre integrantes da Lava Jato, incluindo o ex-juiz Sérgio Moro e procuradores, paralelamente começou uma forte discussão no Twitter sobre o que é o jornalismo e sobre quais são os direitos e deveres do “bom jornalismo”.

Grande parte da discussão gira em torno da ideia de que o The Intercept é “ativista”, por se aliar a hackers para deliberadamente prejudicar a Lava Jato e, como consequência, o governo Bolsonaro. Declarações dadas em momentos diferentes por um dos fundadores do grupo de comunicação, Glenn Greenwald, com críticas ao governo de extrema direita, são usadas como prova do ativismo, o que é alimentado ainda mais pelo fato de Glenn ser casado com o deputado federal David Miranda, do PSol.

Essa não é uma discussão nova, evidentemente, e não é por acaso que é uma das questões que abordo na minha tese. Por sinal, entre minhas principais referências bibliográficas está o livro da pesquisadora norte-americana Adrienne Russell, Journalism as Activism, de 2016 (falei mais sobre o livro em outro post). Na obra, um dos jornalistas-ativistas entrevistados era justamente Glenn, que tem uma citação bastante pertinente: “Não há problema em ser um ativista ou um jornalista; essa é uma falsa dicotomia. O problema é ser honesto ou desonesto. Nem todo ativista é jornalista, mas todo jornalista de verdade é um ativista”[1] (Russell, 2016, p. 109 – tradução livre).

No Twitter, Natalia Viana, uma das fundadoras da Agência Pública, reacendeu essa discussão:

Obtendo esse tipo de resposta:

Foi o próprio jornalismo que ajudou a construir a ideia de que um jornalismo isento e de qualidade necessariamente separa a informação da opinião, é fundamentalmente descritivo, imparcial e equilibrado, construindo um discurso neutro que permita que o público chegue às suas próprias conclusões de maneira livre e sem a influência de qualquer viés. E esse ideal foi apropriado pelo senso comum, sendo por isso mega comum ouvir da boca de não jornalistas o que deve ser ou não deve ser um bom jornalismo.

Só que também não é de hoje que se demonstra o quanto esse ideal é inalcançável, já que o discurso (seja ele qual for) nunca é neutro, passando sempre por escolhas, que no caso do jornalismo, acaba por beneficiar quase sempre os detentores do poder, como concluiu Stuart Hall (1978). Já tratei disso em apresentações acadêmicas e em outros posts, e por isso estou entre os que defendem a urgência de se superar o paradigma da objetividade, pois insistir nesse modelo acaba sendo um tiro no pé, justamente porque sempre vai haver algum viés a ser apontado, algum lado favorecido, e outro prejudicado. Sempre, sempre, sempre.

Ainda assim, não é necessariamente a mesma coisa ser um jornalista e ser um ativista. Um jornalista pode ser alguém comprometido unicamente com a notícia, que busca executá-la com acuidade e boas técnicas para que alcance um grande público e, com isso, se torne relevante (naquele modelo em que as notícias são vistas como um produto à venda, tema tratado há bastante tempo pela professora Cremilda Medina). Já um ativista (seja de que área for) se preocupa com causas sociais, em busca de gerar transformações, e por isso atua com determinados objetivos, aplicando diferentes estratégias para alcançá-los. Além disso, o ativista busca mais do que visibilidade, mas adesão à sua causa, o que faz com que sua relação com o público seja necessariamente mais próxima e intensa.

O jornalista pretensamente puro atua geralmente tendo como base o modelo antigo de comunicação de massa, em que produtores e consumidores estão em lados opostos, bem separados, e em que o fluxo da comunicação é unidirecional, partindo sempre do produtor em direção ao consumidor. Os ativistas atuam em rede e, nesse tipo de estrutura, a comunicação é rizomática, como argumentam Santana e Carpentier (2010), com diferentes conexões, que fazem com que a comunicação parta de diferentes origens, circulando em diferentes direções, e sendo transformada a partir da participação de diferentes atores.

A série da #VazaJato, do The Intercept Brasil, é exemplar quanto a todas essas diferenças. Logo na primeira publicação da série, o grupo jornalístico apresentou um texto em que expôs os procedimentos adotados e que levaram à decisão de trazer à tona as conversas vazadas, sob a justificativa de que “A liberdade de imprensa existe para jogar luz sobre aquilo que as figuras mais poderosas de nossa sociedade fazem às sombras”. Essa postura reforça a antiga visão do jornalismo como watchdog, ou cão de guarda, da sociedade, e não necessariamente distancia a proposta do The Intercept de outras publicações tradicionais. Esse distanciamento se dá principalmente na forma como os jornalistas que atuam na empresa se expõem em outros espaços de visibilidade. Como exemplo, em diferentes postagens no Twitter, o editor executivo do site, Leandro Demori, deixou claro o posicionamento da equipe, ao enfatizar que os objetivos do grupo não se restringem a deixar a sociedade informada; busca-se gerar transformações sociais reais.

Esse posicionamento é reforçado ainda em entrevistas, dadas aos mais diferentes programas, tanto do mainstream, como alternativos, podcasts, blogs, com viés de esquerda, mas também de direita. Por sinal, as conexões entre diferentes atores do ambiente mediático que vão se desenhando ao longo dessa cobertura são bastante heterogêneas e absolutamente incomuns, com parte do vazamento sendo partilhado com uma figura como Reinaldo Azevedo (notório anti-petista) e outra parte com a Folha de S. Paulo (antiga entusiasta da Lava Jato), com o intuito de afastar a cobertura de um viés político-partidário e enfatizar sua relevância jornalística, mas sem deixar de demarcar a postura ativista, em prol de mudanças sociais. A fala de Glenn ao Democracy Now, programa de jornalismo alternativo dos Estados Unidos, confirma esse posicionamento.

Mas é ruim, ou errado, ser um jornalista ativista, que expõe seu ponto de vista e suas escolhas, e não se restringe a informar, mas age para gerar transformações sociais reais? De forma alguma. Mais do não ser crime, como argumentou a Natalia Viana, ser um jornalista ativista é mais do que nunca necessário nessa nossa sociedade da desconfiança (Rosanvallon, 2008), em que tudo é desacreditado, o que, ao mesmo tempo, favorece as chamadas fake news, que se apoiam na fórmula da objetividade para alcançar algum efeito de verdade e, assim, enganar os “tontos”. Se realizar um trabalho que busca ser realmente relevante para a sociedade, sem omitir posicionamentos, dando transparência à produção, sem maquiagens que simulem uma neutralidade inalcançável, é ser ativista, que sejamos todos jornalistas ativistas, pois talvez esse seja o melhor caminho para restabelecer a credibilidade dos media e, com isso, a própria relevância do jornalismo.

Referências

Hall, S. (1978). The social production of news. In S. Hall (Ed.), Policing the crisis: Mugging the State, and Law and Order. London: Macmillan.

Rosanvallon, P. (2008). Counter Democracy: Politics in an age of distrust. Cambridge, New York: Cambridge University Press.

Russell, A. (2016). Journalism as Activism – Recording Media Power. Cambridge: Polity Press.

Santana, M., & Carpentier, N. (2010). Mapping the rizhome. Organizational and informationsl networks of two Brussels alternative radio stations. Telematics and Informatics, 27(2), 162–176. Retrieved from http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0736585309000483


[1] Texto original: “It is not a matter of being an activist or a journalist; it’s a false dichotomy. It is a matter of being honest or dishonest. All activists are not journalists, but all real journalists are activists”.

Como os jornais estão se canibalizando: uma carta ao jornal O Povo

A frase de Clay Shirky escrita em 2008 choca ainda hoje: “a sociedade não precisa dos jornais. Nós precisamos é do jornalismo”. O trecho integra um artigo em que o autor norte-americano argumenta que o foco da defesa do jornalismo não deveria recair sobre os jornais impressos, que mais cedo ou mais tarde vão sucumbir pelas mudanças geradas pelo ambiente digital. O que deve ser defendido, na opinião dele, é uma prática jornalística que de fato responda às demandas da sociedade, e não fique presa à sua própria existência, como um fim em si, iludida pela falsa ideia de que seu papel é tão importante para a manutenção da democracia que se confunde com a própria democracia.

Claro que os jornais são importantes, claro que eles foram fundamentais para o desenvolvimento das bases da democracia em todo o mundo democrático, mas isso não apaga os equívocos que o setor dos media cometeu, até mesmo em sentido antidemocrático, para defender seus próprios interesses, em diferentes momentos da história. Um desses equívocos foi, durante muito tempo, a principal estratégia de negócios dos jornais: sufocar iniciativas de pequeno e médio porte, por meio do abuso do poder econômico e da influência política, levando-as a fechar e tornando o campo mediático bem mais concentrado e, ao mesmo tempo, menos plural. Agora, como alegam Broersma e Peters (2013, p. 5), “depois de comerem todas as outras espécies, eles (os jornais) canibalizam a si mesmos”.

Saturno devorando a su hijo (1819-1823), obra de Francisco de Goya, retrata o deus Cronos (Saturno, na mitologia romana), que comia seus filhos por temor de ser destronado por um deles. É uma metáfora sobre o passar do tempo. Aplicada ao jornalismo, a metáfora reflete as ações canibalescas que tem sido aplicadas pelos jornais contra os seus próprios jornalistas em resposta às mudanças no ambiente mediático (para se “defenderem” da perda de $$)

Dia após dia, assistimos essa canibalização nos passaralhos que assombram as redações de tempos em tempos e na exclusão de direitos, negados não só a novos trabalhadores, mas também aos antigos, que passam a se sentir cada vez mais descartáveis e desestimulados a produzir algo de qualidade, uma vez que se valoriza mais o número de cliques e likes do que o potencial transformador de uma boa reportagem. O que os jornais esperam com esse tipo de atitude eu não sei exatamente: equilíbrio financeiro? Lucro? Ganhar mais leitores? Posso falar apenas sobre o que tem sido recorrente: a queda nas vendas e nas receitas só tem se acentuado, e isso se dá principalmente porque os jornais preferem abrir mão do seu principal capital simbólico, o bom jornalismo, conquistado a duras penas pelos seus jornalistas. Se olhassem para o lado (dos leitores), esses mesmos jornais perceberiam que descartar o jornalismo e abraçar os fait divers (ou os chamados clickbaits, em tempos de redes sociais) é exatamente o que os torna socialmente irrelevantes e, por isso, desnecessários.

Falar é fácil, podem alegar alguns gestores de mídia impressa, o difícil é colocar em prática soluções de longo prazo que de fato deem segurança financeira aos negócios. Afinal, sem dinheiro, não há jornalismo. De fato, ainda não surgiram soluções definitivas para essa encrenca, mas algumas experiências mundo afora têm demonstrado que uma das saídas passa pelo bom jornalismo. Falo do que acontece com o The Guardian, o El Diario.es (Espanha), o Buzzfeed, projetos empresariais que têm se mantido sustentáveis ao investir em boas reportagens. Tá, no Brasil as pessoas leem menos, têm um menor nível educacional, têm menos dinheiro, então é claro que os jornais vão sofrer mais para sobreviver, principalmente nas cidades mais pobres, como é o caso de Fortaleza (CE). Sim, tudo isso é verdade, mas exemplos como o da Agência Pública também sinalizam que ainda há procura por um bom jornalismo, que defenda o interesse público, fiscalize os poderosos e coloque em evidência problemas sociais, sempre à frente dos interesses privados.

Mas, aí, entram em jogo as tais consultorias, ligadas ao “mercado”, que chegam nas redações e mandam cortar aqui, ali, esmagando as rotinas de trabalho, inviabilizando o crescimento profissional, e agora, mais recentemente, até mesmo cortando direitos conquistados há anos pelos trabalhadores do setor, como se isso fosse normal e aceitável. Como não têm para onde ir, os trabalhadores muitas vezes aceitam calados, afundando seus problemas financeiros e se tornando mais e mais desiludidos com a profissão. O sonho de ser jornalista, que se materializa quando publicamos a primeira matéria de capa num jornal, se transforma em um pesadelo.

Para completar, os trabalhadores que demonstram a insatisfação, buscando defender seu último naco de dignidade, são acossados, assediados, sendo que alguns são tomados como exemplos (e, por isso, demitidos) para mostrar aos outros que sim, é melhor ficarem calados se ainda quiserem manter seu salário cada vez mais miserável. E, olha a ironia, quem são os algozes dos jornais? Os próprios jornalistas, mas aqueles que conquistaram um carguinho de poder, e que, mesmo sendo empregados, deixaram de se enxergar como trabalhadores (será que se sentem empresários?) e, por isso, não veem nada de errado em aceitar cortes de direitos receitadas por figurões do “mercado” que nada têm a ver com o jornalismo.

Tenho vergonha do que está acontecendo no setor, e sobretudo do que o jornal O Povo está fazendo com os seus jornalistas. Falo do jornal O Povo pois atuei ali durante três anos, tenho muitos amigos, ex-alunos, e tenho assistido atônita a piora nas relações trabalhistas que tem sido aplicada de uns tempos para cá. Atitudes semelhantes estão sendo tomadas também pelo seu “concorrente” (que, nesses momentos, atua como parceiro), Diário do Nordeste, mas vou me referir especificamente sobre O Povo, que é o caso que conheço melhor.

Não é de hoje que as condições não são as ideais, mas havia alguns benefícios que compensavam sacrifícios e serviam como complemento relevante para os salários dos repórteres, como as diárias de viagem, o auxílio creche e as bolsas de estudo para os que têm filhos, o adicional para os repórteres que cobriam polícia. Do nada, cortaram alguns desses direitos e ameaçam tirar os outros, alegando falta de acordo com o sindicato dos jornalistas, mas sem levar em conta que os prejudicados nesse impasse são os jornalistas da casa, aqueles que se desdobram para produzir conteúdo multiplataforma, quem dá vida e sentido à empresa.

Como professora de jornalismo, há algum tempo me incomoda pensar que a universidade sempre formou jornalistas para serem empregados dessas empresas de comunicação. Saímos do curso sem saber fazer outra coisa, acreditando que só há vida para um jornalista dentro de uma redação (seja de jornal, TV, rádio). Estudar os media alternativos e a prática do jornalismo alternativo me fez mudar radicalmente de ideia, e hoje penso que devemos formar jornalistas capazes de atuar principalmente por conta própria, em pequenas iniciativas, ou grandes, mas com autonomia, mobilidade e espírito desbravador, para não ficarem à mercê de empresas que não prezam o jornalismo, apenas a sustentabilidade financeira de seus acionistas. As empresas, claro, seguem sendo importantes, dão empregos e asseguram a renda de muitas pessoas, sendo uma verdadeira tragédia que se degringolem do jeito que está acontecendo. Isso, porém, não lhes dá o direito de massacrar ninguém, o que vai, inclusive, contra os princípios da democracia e, consequentemente, do próprio jornalismo. Como um jornalista vai falar sobre justiça social se ele não pode defender sequer os seus próprios direitos? Que jornal pode falar em democracia quando pratica assédio moral para calar a boca de seus próprios trabalhadores? 

Por essa e por outras, não devemos defender os jornais. Precisamos defender o jornalismo, como uma prática essencial para a sociedade democrática. Como o jornalismo é produzido por jornalistas, devemos repudiar todo tipo de ação que corroa a profissão. Certamente não serão os jornais que irão “salvar” o jornalismo, mas sim seus jornalistas. Por isso, lanço aqui meu repúdio ao jornal O Povo e minha solidariedade a todos os colegas que têm sido perseguidos e humilhados pelos executivos desse jornal.

Referências bibliográficas

Broersma, M., & Peters, C. (2013). Rethinking journalism: the structural transformation of a public good. In C. Peters & M. Broersma (Eds.), Rethinking Journalism – Trust and Participation in a Transformed News Landscap (pp. 1–12). London and New York: Routledge.

Shirky, C. (2008). Newspapers and thinking the unthinkable. Retrieved March 29, 2019, from https://www.edge.org/conversation/clay_shirky-newspapers-and-thinking-the-unthinkable

Escola sem Partido coisa nenhuma… Produzir conhecimento é uma ação política!

Depois que conheci a Análise do Discurso (sobretudo Charaudeau e van Dijk, inicialmente) e Stuart Hall, passei a ter como pressuposto de vida a ideia de que não existe neutralidade. Nem mesmo as bulas de remédio são neutras, quanto mais matérias jornalísticas e pesquisas acadêmicas. Quem produz discurso sempre se posiciona, nem que seja ao dizer que não se posiciona, e que é neutro e objetivo. Ou afirmando em letras garrafais que não tem ideologia e que vai combater as “ideologias nefastas”. Como o cimento que cola os tijolos de uma casa, a ideologia – seja ela hegemônica, não-hegemônica ou até contra-hegemônica – está sempre ali presente em cada pensamento que produzimos, e não pode ser simplesmente descartada. No máximo podemos identificá-la, tomar “consciência” de sua existência, como dizia Gramsci, e a partir daí procurar refletir sobre ela e, se for o caso, se reposicionar, se contrapor, ou até mesmo assumir essa ideologia, em uma decisão que nunca é plenamente racional, e que passa por nossos sentimentos, conflitos pessoais, interações, enfim, por todas as mediações que nos fazem ser quem somos.

Por mais que para mim essa questão esteja mais do que esclarecida (é impossível ser neutro e pronto!), a negação da possibilidade de se posicionar ainda está a plenos vapores quando se trata da produção e difusão do conhecimento, o que inclui a escola (e a universidade) e o jornalismo. Projetos como o da Escola sem Partido partem dessa ideologia positivista que defende a objetividade como algo possível, necessário e alcançável, bastando para isso que o professor em sala de aula se abstenha de falar suas próprias opiniões e se atenha aos fatos. O que omite o pressuposto de que os fatos a serem relatados foram escolhidos entre inúmeros outros, e a própria forma como o relato é feito pressupõe um viés, que beneficia um lado e prejudica ou até invisibiliza outro (afinal, Portugal descobriu o Brasil ou invadiu o território, que já era ocupado por uma vasta população indígena à época? A ação dos EUA na Síria é um ato de combate ao terrorismo ou uma série de crimes humanitários?). Vieses que existem em todas as disciplinas e que definem o que se deve aprender.

A defesa da neutralidade, no fim das contas, contribui para o desconhecimento, para a falta de reflexão, limitando o aprendizado, e não o inverso, como os ideólogos dessa política querem fazer crer. E não importa o quanto se discuta, os argumentos rasos nem tentam ser razoáveis, basta “extirpar Paulo Freire” das salas de aula, combater o “marxismo cultural”, impedir que professores falem de “feminismo” e outras ideologias nefastas, e retomar as escolas de antigamente, que essas sim eram boas. Tá… E se fizermos exatamente o contrário dessa receita? E se incentivarmos cada vez mais a produção e a difusão de conhecimento engajados em causas sociais?

Pois é, nem só de Escola sem Partido e objetividade vive o mundo. A necessidade de assumir posicionamentos e de produzir uma ciência engajada tem sido amplamente discutida nos meios acadêmicos (pelo menos nas ciências sociais). Mais do que isso, discute-se a necessidade de a ciência deixar seus gabinetes e passar a se envolver diretamente em determinadas lutas, para efetivamente contribuir para gerar transformações sociais.

Trago três exemplos de discussões que vi recentemente em eventos acadêmicos que aconteceram no final do ano passado. O primeiro deles no Congresso da Ecrea, com a fala de uma das congressistas principais, Lina Dencik, que defendeu a necessidade de estabelecer estratégias de resistência na sociedade datatificada para se buscar justiça social no acesso aos dados. Fala que levou em conta o quanto estamos nas mãos de meia dúzia de empresas de tecnologia, que têm como principais ativos os nossos dados, nossas informações, que utilizam a seu béu prazer, lucrando bastante, para gerar mais dependência, mais lucro, e, como o caso da Cambridge Analytica demonstrou, para nos manipular deliberadamente com fins políticos. Para Dencik, os acadêmicos precisam deixar de se contentar em simplesmente estudar os dados fornecidos por essas empresas, como se fossem neutros, e ter postura crítica em relação a essas elas, ainda que isso signifique não ter acesso a todos os dados e sobretudo financiamentos que elas mesmas liberam para a pesquisa. Postura crítica que pode significar, então, não ter dinheiro para pesquisar, mas ter independência.

Em um painel sobre comunicação política também no Congresso da Ecrea, Natalie Fenton falou sobre um novo projeto que desenvolve na Inglaterra com comunidades vulneráveis, buscando compreender o que as pessoas pensam sobre o futuro, e o que podem fazer para ter mais esperança. Projeto motivado pela percepção de que as desigualdades sociais estão cada vez mais profundas, com uma fenda enorme entre os detentores do poder e os pobres, que são levados a não sonhar, a não ter perspetivas sobre para onde vão, sobre como podem ter um mundo melhor, o que gera um enorme vazio e descrença com relação a todas as instituições, ao governo, aos partidos (alguma semelhança com o Brasil não é mera coincidência). Fenton considera que a esquerda também contribuiu para difundir esse sentimento, ao não apresentar propostas alternativas e se distanciar das bases. No entanto, ela não rejeita o projeto político da esquerda, e sim propõe que este seja reformulado, com uma mudança no pensamento socialista que promova as liberdades, e que alimente um pensamento utópico anti-nostalgia, a partir de uma ação participativa que de fato leve em conta o que as pessoas pensam, e não o que os pesquisadores e os políticos acham que elas pensam. Uma ação liderada pelos próprios cidadãos “comuns” e que contribua para levá-los não apenas de volta ao trabalho, mas à política como algo essencial e transformador de suas vidas.

Por último, cito a fala de uma outra pesquisadora (não é à toa que são todas mulheres!), Charlotte Ryan, dos Estados Unidos (esta eu escutei em um congresso especificamente sobre ativismo, Mediaflows, também no final do ano passado). Ryan é reconhecida pesquisadora na área do “framing”, mas ultimamente tem se dedicado a estudar estratégias midiáticas na organização de movimentos comunitários, e defende que a produção de conhecimento não pode estar dissociada da atuação política. Por isso, ela participa ativamente de movimentos sociais enquanto investiga suas práticas, e argumenta que, desta forma, a pesquisa acaba sendo coletiva, pois os ativistas são coprodutores ativos do conhecimento ali produzido.

Conferência de Charlotte Ryan no Congresso Mediaflows, em Valência (novembro de 2018).
Conferência de Charlotte Ryan (à direita) no Congresso Mediaflows (novembro/2018)

Como o objetivo deixa de ser meramente publicar em determinadas revistas “referees” e passa a ser contribuir para gerar transformações sociais, Ryan defende que a produção acadêmica precisa ser clara e compreensível para os ativistas e as comunidades em geral, tendo de adotar uma linguagem mais acessível, e que tudo o que for produzido seja sempre compartilhado com essas organizações, para que seus integrantes possam discutir os resultados e refletir sobre suas próprias práticas, de modo a aprimorá-las.

O problema, nos três exemplos, começa dentro do próprio campo acadêmico, que prioriza números, a tal objetividade e publicações em revistas de renome. Além de valorizar cada vez mais a aproximação com um certo mercado, que financia pesquisas para obviamente se beneficiar, não importando se elas prejudicam a população. Ou se uma parte muito volumosa da população deixa de ser objeto de estudos, porque, afinal, não está entre os detentores do poder, e por isso não interessa. Mas esses constrangimentos não podem nos paralisar. Produzir conhecimento que leve a melhorias de vida, sobretudo dos grupos sociais que mais sofrem injustiças sociais, não pode ser visto como algo secundário. Deve ser o objetivo principal de qualquer pesquisa, de qualquer área de atuação. E, sob essa ética, uma das obrigações do pesquisador, do professor e do jornalista é encontrar maneiras de superar as limitações e, assim, alcançar seus objetivos. Com a máxima transparência, ao indicar seus posicionamentos, seu ponto de partida, e seus objetivos, e com a máxima abertura para ouvir e incorporar a participação das pessoas mais diversas e plurais possíveis. Afinal, produzir e difundir conhecimento, querendo ou não, é sim uma ação política.

Cinco dicas para sobreviver a um doutorado

Quem passa por um mestrado já sabe o sofrimento que é se debruçar por dois anos sobre um mesmo objeto, dissecando-o, problematizando-o e sempre, infinitamente, encontrando novas referências que podem mudar totalmente a abordagem que você está fazendo sobre aquele objeto. No doutorado, esse sofrimento é multiplicado por dois, pois são quatro anos e a exigência de produzir algo de excelência é muito maior. Muitas vezes sentimos que se trata da obra da nossa vida, e isso é sério demais, aumentando muito a cobrança que fazemos sobre nós mesmos.

E daí que não é nada incomum que muitas pessoas, durante o doutorado, acabem iniciando, ou piorando, processos depressivos, ansiedade, pânico. Há quem se divorcie, ou decida abandonar tudo e mudar totalmente o tema, e muitos desenvolvem problemas de saúde que depois se tornam crônicos, como hipertensão. Até a quantidade de fios brancos na cabeça e de rugas pelo rosto se alastra – não, isso é só culpa da idade mesmo.

Enfim, trata-se de um período muito solitário, já que desenvolvemos esse grande projeto sozinhos – por mais que o ou a orientadora esteja presente. O cotidiano é solitário e nem sempre temos com quem conversar sobre o nosso trabalho, para falar das descobertas, dos impasses, dos desafios. E, ainda por cima, temos de gerir nosso tempo de leitura, de escrita, de trabalho empírico, os eventos académicos que vão surgindo, o aprendizado de línguas, de softwares de apoia à pesquisa, manter a leitura em dia, e ainda acompanhar a realidade do nosso país, do mundo. E ainda ser mãe, esposa, filha, cuidar da casa, da roupa, da própria saúde…

Para não surtar, venho desenvolvendo algumas atividades que acabam me fazendo bem e que tem me ajudado a não me sentir tão cansada com o doutorado. Fiz uma lista e vou compartilhar, com a ideia de quem sabe servir de apoio para outras pessoas que estão no mesmo barco. Vamos lá.

  1. Arranjar um hobbie, em especial se for um trabalho manual. Algo que dê prazer, que ocupe de algum modo seu tempo livre, para que não fique só na frente do computador com raiva do que vê no Facebook. Eu comecei a fazer bordados e depois voltei para o crochê. Faço quando estou com a cabeça pesada de tanto pensar. Melhor coisa do mundo.IMG_20180925_163101
  2. Não deixar de fazer exercícios físicos. Parece clichê, mas não é: a cabeça pensa muito melhor quando o nosso corpo está bem. Não precisa virar um atleta de competição. Mas não dá pra ficar parado. Eu comecei a frequentar uma academia (ginásio, em Portugal), mas ainda assim me custava, eu não gostava de ir. Agora me encontrei no pilates e na yoga. Conto os dias para ir lá me esticar um pouco. O importante é fazer algo para deixar o corpo em movimento, e mais ainda se gostar, mantendo uma rotina.
  3. Ler literatura, e não só textos acadêmicos. No doutorado, lemos sem parar, não só quando estamos fazendo uma revisão de literatura. É o tempo todo. E cansa. Você começa a ser até mais pragmático, lê o resumo, as conclusões e de alguns textos vai ler o miolo, para encontrar algo que pode ser muito útil. Esse tipo de leitura não dá prazer, é funcional. Mas ler é muito prazeroso, e não podemos esquecer disso. Não me tornei uma máquina de leitura, mas quase todas as noites, na hora de dormir, leio um pouco, e nisso já li alguns livros fantásticos ao longo do meu doutorado. Vale demais a pena.
  4. Reservar ao menos um dia da semana para não fazer nada. Bem, eu não diria não fazer nada, exatamente, porque quem tem filhos como eu sabe que isso é quase impossível. Mas é sair, aproveitar o dia de sol, ir ver os amigos, sem pressa e sem aquela pressão de ter que estar trabalhando. É seu dia de folga, mais do que merecido.
  5. Escrever um blog para desabafar sobre a tese. Esse foi o meu caminho para suprir a falta de ter com quem conversar mais longamente sobre o que eu estava fazendo. Pode ser um diário pessoal também, que ninguém leia, mas estabelecer algum nível de diálogo, mesmo que seja consigo mesma, é de certo modo acalentador e nos ajuda a refletir sobre o próprio processo de construção da tese.

Fora tudo isso, recomendo que se escreva a tese desde sempre (já falei um pouco sobre a escrita acadêmica num texto anterior). Mesmo que não seja um texto acabado, pronto para ser o texto final da tese, sentir que estamos escrevendo já nos dá confiança de que tudo vai terminar bem. E ter sempre a certeza de que este não é “o” trabalho da sua vida. É um dos primeiros como acadêmico. Então, vai ser imperfeito, incompleto, passível de receber críticas. Mas vai ser um trabalho respeitável, relevante, que vai trazer contribuições para o campo acadêmico e, quem sabe, para a sociedade. Nem que seja uma contribuição pequenina, mas estará lá. Manter a autoconfiança e a autoestima é ultranecessário em qualquer trabalho, ainda mais ao desenvolver um projeto tão grande como é uma tese.

O texto acadêmico

Adoro ler e escrever. Quando pequena, nutria diariamente um diário, à mão, para refletir sobre os acontecimentos do dia. Amava quando tinha que fazer uma redação como tarefa escolar e logo cheguei à conclusão de que não queria tratar doentes, mas sim escrever, e por isso decidi ser jornalista.

Mas gostar de escrever (e de ler) não significa que automaticamente a pessoa escreva bem. Acredito em talento, mas acredito acima de tudo em prática, e em uma boa aplicação da técnica. No jornalismo, demorou um bom tempo para eu sentir alguma segurança na hora de colocar em palavras o que eu havia apurado naquele dia. Mesmo fazendo isso todos os dias.

Ao migrar para o mundo acadêmico, em um primeiro momento pensei que seria bem fácil, já que escrever era parte da minha rotina profissional. Não devia ser tão diferente assim, pensei de cara. A primeira chacoalhada, porém, não demorou a acontecer: quando eu preparava o projeto da minha monografia, ainda na graduação, a querida professora Júlia Miranda, uma mestra na pesquisa em Sociologia, foi firme: “Eu não quero texto jornalístico. Quero um texto acadêmico. Faça tudo de novo”.

Foi só então que me toquei que a diferença entre esses dois tipos de texto é abissal. Enquanto no jornalismo precisamos ser concisos, resumir tudo em poucas palavras (apoiados, muitas vezes, no senso comum, para facilitar a compreensão), na academia precisamos esmiuçar cada conceito, explicar tudo, buscando autores para embasá-lo, e tentar ao máximo se afastar do senso comum. Enquanto no jornalismo nos satisfazemos com declarações para provar o que estamos afirmando, na academia precisamos articular as ideias, os conceitos, contrapor vertentes diferentes, enquadrar a argumentação em uma corrente teórica. Não basta inserir uma coleção de citações (como infelizmente fazem alguns pesquisadores); um texto acadêmico produz conhecimento, e o faz a partir dessa prática de articulação. Sem isso, trata-se apenas de reproduzir o que os outros já disseram, o que é insuficiente.

Não vou nem me ater tanto à questão do estilo do texto – bem mais formal, na academia, do que no jornalismo – porque acredito que esse nem é o principal problema. De todo jeito, eis mais um desafio, já que acaba sendo até fácil fazer um texto acadêmico repleto de jargões e sequências textuais incompreensíveis (e talvez muita gente coloque isso como meta, para parecer que fez um texto mais profundo, ou se sentir mais inteligente). O texto acadêmico, contudo, precisa ser compreensível a qualquer pessoa, mesmo a quem não é propriamente daquela área de estudos, sem ser simplista. Comunicar da maneira mais clara, incluindo o conteúdo mais interessante e amplo possível, é um grande desafio.

E eis onde quero chegar: os objetivos do texto acadêmico são bem diferentes dos objetivos do texto jornalístico. E por isso é que, essencialmente, são textos diferentes. Enquanto o texto jornalístico tem como objetivo principal informar sobre um determinado acontecimento, em acordo com determinada linha editorial, e precisa fazê-lo de um modo suficientemente atrativo, para conquistar a audiência, o texto acadêmico tem como objetivo relatar os percursos e os resultados de uma pesquisa científica, o que o faz tanto a partir de reflexões teóricas, especulativas, e do relato sequenciado de estudos empíricos, cujos resultados levam a novas reflexões teóricas. Resultados que, assim, contribuem para o desenvolvimento do campo de estudos em que o trabalho se insere, levando à proposição de novos rumos de pesquisa, ou de mudanças/confirmações de paradigmas, que podem ser posteriormente convertidos em produtos e políticas públicas, que podem até gerar transformações sociais.

Por tudo isso, acabei tendo que reaprender a escrever. E sigo na luta, pois não é fácil incorporar tantas alterações num corpo já habituado ao texto fluido do jornalismo. Nesse percurso, vale recorrer a ajudas. Uma delas que recomendo muito é o livro de Howard Becker, Truques da Escrita, que traz algumas dicas bem legais. Uma delas é escrever, mesmo quando você se sente meio bloqueado, ou até sem paciência pra ficar coletando autores para compor suas ideias. Depois de tantas leituras, de tantas conversas com o (a) orientador (a), temos muita coisa na cabeça e a melhor coisa é ir colocando no papel (ou no computador). Depois fica bem mais fácil fazer as articulações, mudar de lugar, cortar, inserir novas ideias.

Outra coisa muito boa a fazer é ler prestando atenção à técnica aplicada por outros autores. Veja como os argumentos são montados, como apresentam cada parte do trabalho, desde a introdução, as justificativas, os objetivos, as hipóteses, a metodologia (e os métodos), os resultados da pesquisa empírica e a discussão desses resultados. Veja até de que modo montam cada parágrafo (iniciando com a ideia geral, e depois abrangendo para trazer detalhes, especificações, exemplos) e ordenam a sequência de parágrafos. Mas é bom focar em quem escreve bem. O mundo acadêmico está repleto de textos bem ruins.

Enfim, tudo isso na teoria é muito fácil, mas na hora de sentar e escrever uma tese, são outros quinhentos. O branco da tela assusta e muito, mesmo quando você sabe que tem sei lá quantas páginas de fichamentos, mais sei lá quantas páginas de transcrições, e tem certeza de que está tudo na cabeça. Em outro momento conto como estou fazendo com a minha. Só antecipo que, na hora do “branco”, volto a dar uma de jornalista. Lembro que tenho um deadline curto e começo a escrever partir “do meio”, deixando o começo para depois.

Quando vozes alternativas se tornam poderosas

A importância do trabalho jornalístico nem sempre é evidente. Dizemos que é essencial para a democracia, para escrutinar os poderes, mas nos desanimamos quando vemos jornais (em seus mais diversos formatos) que simplesmente reproduzem acriticamente o discurso hegemônico, servindo de repositório de declarações de quem tem dinheiro, de quem tem poder, o que pode até parecer inofensivo, atendendo os critérios dos valores-notícia estabelecidos pela tal objetividade jornalística, mas que prejudica diretamente quem está excluído de tudo.

Essa postura acrítica, ou às vezes até crítica, mas com uma crítica às avessas, que vai contra a tudo o que é de interesse social, considerando sinônimo de interesse público apenas o que é de interesse privado e sobretudo do mercado, felizmente tem sido enfrentada por grupos de jornalismo alternativo que, ao redor do mundo, defendem um comportamento declaradamente engajado, em defesa dos setores da sociedade sem privilégios, excluídos, e oposição direta à lógica dominante. O preço a pagar por essa postura é, muitas vezes, ser considerado ilegítimo, ou não-jornalismo. Este artigo do Público fala um pouco dessa visão distorcida sobre o jornalismo.

Mas a insistência, ou melhor, a resistência gera também bons frutos. Vou apresentar um exemplo recente da Espanha, o portal ElDiario.es, que após um furo de reportagem e uma grande sequência de desdobramentos, acabou fazendo com que a presidenta da Comunidade de Madrid, Cristina Cifuentes (do Partido Popular, de direita), renunciasse ao cargo.

 

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Publicação do ElDiario.es após a renúncia de Cristina Cinfuentes, ressaltando o papel do jornal na decisão da até então presidenta da Comunidade de Madrid

 

Pra começar, vou fazer uma contextualização do jornal. O ElDiario.es foi fundado em 2012 por um grupo de jornalistas que decidiu montar uma empresa. O principal meio de financiamento (mais de 70%) é com a venda de cotas de sociedade, vendidas a partir de 5 euros por mês, contando hoje com mais de 30 mil sócios. O restante vem de publicidade. A redação hoje conta com cerca de 80 jornalistas e não é deficitária. Ou seja, consegue pagar todas as despesas. O acesso às notícias segue gratuito para todos.

No último dia 21 de março, o jornal trouxe um furo. Cristina Cifuentes, presidenta da Comunidade de Madrid (o que equivalente, grosso modo, a governadora) e uma das figuras políticas mais proeminentes no partido do presidente da Espanha, Mariano Rajoy, tinha obtido um título de mestrado na Universidade Rey Juan Carlos, que é pública, com notas falsificadas. A cobertura ultrapassou e muito essa primeira denúncia. Dia após dia, surgiam novidades: o trabalho de fim de mestrado não constava nos arquivos da universidade, a ata da defesa desse trabalho final tinha assinaturas falsificadas de membros da banca, alunos que frequentaram o mesmo mestrado alegavam nunca ter visto Cifuentes nas aulas do curso, mesmo a matrícula havia sido feita depois de três meses de iniciadas as aulas, sendo que alguns módulos já tinham sido encerrados (e mesmo assim Cifuentes tinha recebido notas altas pelas disciplinas). Aqui dá para ver algumas das capas do portal com notícias sobre o caso. Denúncias reforçadas pelas contradições da própria presidenta da Comunidade de Madrid – que sempre negou qualquer ilegalidade, mas passou a responsabilizar a faculdade por possíveis erros – e por dirigentes universitários.

Desde o primeiro dia, a cobertura do ElDiario.es gerou repercussão tanto no parlamento, como em outros grupos mediáticos, inclusive a televisão, que começou a debater o tema também diariamente, tanto nos programas informativos, como nos humorísticos e de debates. Com exceção da TV estatal, a TVE, que preferiu minimizar o caso minimizar o caso o quanto pôde. Diante do estrago, Cifuentes decidiu processar os jornalistas que estavam à frente da cobertura, alegando que eles mentiam. E os jornalistas insistiam que não, era ela quem mentia.

Partidos da oposição chegaram a apresentar uma moção de censura contra a presidenta, que seria votada em maio e que poderia levar à necessidade de novas eleições, e mesmo assim Cifuentes repetia que não iria renunciar (a versão completa desse vídeo, que se tornou célebre pela expressão “no me voy, me quedo” que ele usou para negar a renúncia, pode ser vista aqui), imaginando que o tempo pudesse esfriar o assunto. Enquanto isso, estudantes e professores da Universidade Rey Juan Carlos se mobilizavam para protestar contra o uso da instituição pública para favorecer políticos por meio fraudes que a desqualificam.

Só que o ElDiario.es e outros meios (alternativos ou não) não deixaram isso acontecer, e seguiram alimentando o noticiário com novidades. Até o dia 25 de abril, quando um site que notadamente mais publica fake news do que notícias verificáveis, o OkDiário, trouxe a público um vídeo de 2011 que mostrava Cifuentes sendo desmascarada por seguranças de uma loja após tentar roubar dois frascos de creme anti-idade. Após ser descoberta, Cifuentes pagou pelos produtos e não houve maiores consequências, contudo o vídeo sobreviveu. E causou sua queda (pelas regras, Cifuentes continua sendo deputada, e o PP tem a chance de apresentar um novo nome para constituir governo, tendo que passar pelo crivo da maioria da Assembleia de Madrid).

Por um lado, pode parecer que houve uma perseguição de um meio de comunicação contra uma personalidade política, como a gente está acostumado a ver no Brasil contra Lula, Dilma e cia. (desde que sejam do PT). Mas a postura do ElDiario.es tinha uma notável diferença: toda a cobertura se pautou em apuração jornalística de boa qualidade, com documentos atestando tudo o que se falava, e que acabavam expondo contradições. Não ficou em meras declarações, achismos e opiniões pessoais. Mais do que isso, o jornal acabou se voltando contra a principal força política da Espanha, o PP, partido que detém a maioria nacionalmente, e se voltar contra o poder – que conta com a simpatia do mercado financeiro e dos setores produtivos do país –, não é tarefa fácil. Como o sustento do periódico é garantido pelos leitores, pôde-se correr riscos.

Enfim, de toda essa história, a principal lição que dá pra tirar é que quando existem meios de comunicação plurais em um determinado local, com perspectivas políticas diferentes (claramente o ElDiario.es é mais alinhado à esquerda), e com recursos para investir em matérias próprias, furos, grandes reportagens, crescem as chances de vir à tona histórias de abuso do poder como essa de Cifuentes, o que é muito importante tanto para aprimorar as práticas cidadãs (já que as pessoas poderão se sentir mais incentivadas a denunciar irregularidades diante desse exemplo, que foi originalmente denunciado por estudantes do mestrado), como as práticas políticas, já que notadamente haverá uma maior vigilância. Quando a mídia é uma coisa só, repetindo apenas um mesmo discurso, sem divergências e apenas um alvo em comum, essa possibilidade deixa de existir.

Discurso de ódio, liberdade de expressão e a ameaça à democracia

Já escrevi em outro post sobre o discurso de ódio, mas volto ao tema, inspirada tanto pelos recentes acontecimentos do Brasil, com a morte da Marielle, a iminente prisão do Lula e toda a violência que vemos brotar em todas as capitais do Brasil, como por uma palestra que vi ontem na Universidad Carlos III de Madrid. Sob o tema “Discurso de ódio: há espaço para regulação?” (tradução minha), a pesquisadora grega Katharine Sarikakis, professora na Universidade de Viena, tratou do tema, apresentando diferenciações extremamente relevantes entre o discurso de ódio, a liberdade de expressão e a ofensa.

Sim, o discurso de ódio não nasceu com as redes sociais, nem é exclusividade do Brasil. É fácil lembrar do que fez o regime nazista contra os judeus por meio da propaganda, e que logo se materializou nos campos de concentração e nas mortes massivas. E o que acontece com milhares de refugiados que sequer conseguem entrar na Europa, e ficam presos em novos campos de concentração com condições sub-humanas, alimentadas por falas de políticos, como Marine Le Pen, na França, Viktor Orbán, na Hungria, ou Geert Wilders, na Holanda (nomes que vão se multiplicando cada vez mais, em todo o território europeu, focados em um inimigo comum, o imigrante).

O discurso de ódio, como explicou Sarikakis, é um conceito que precisa ser melhor trabalhado, já que passa por questões subjetivas e conjunturais, mas que tem como ponto de partida o direito humano de existir e de ter dignidade. Assim, é discurso de ódio todo aquele que incita ou encoraja o ódio, a discriminação e a hostilidade. São discursos que ferem, como diz a Judith Butler, que ameaçam diretamente o corpo.

O discurso de ódio, assim, não pode estar protegido pelo princípio universal da liberdade de expressão. A liberdade de expressão é um direito humano, mas limitado por outros direitos, como o direito à dignidade, o direito a não ser desumanizado nem demonizado, o direito a não ser exterminado socialmente (nem simbolicamente, nem fisicamente).

Ainda assim, trata-se de um conceito abstrato. Na Europa, há tentativas tanto dentro do blodo da União Europeia, como em legislações nacionais, de regular o discurso de ódio, para criar punições a quem os dissemina. Nessas tentativas, inclui-se como discurso de ódio os de cunho racista, anti certas religiões, contra certas orientações sexuais, os de discriminação por gênero, os de negação ao holocausto, os de apoio a regimes totalitários, os anti-políticos e os anti-constitucionais. Não deixa de haver críticas a essas tentativas de regulação, como mostra este artigo do Gleen Greenwald.

Combater o discurso de ódio, como disse Sarikakis, não é negar a discordância nem mesmo suprimir o direito à ofensa. Pode-se ofender, pode-se criticar, mas não difundir o ódio, não pregar a destruição do outro. Assim, parte-se da ideia de que em um sistema democrático plural, ninguém tem o direito de não ser ofendido, e todas as ideias, opiniões, credos, podem ser criticados e até satirizados. O que se deve coibir são falas que incitam a violência, o ódio e a discriminação contra pessoas. E isso tem a ver com uma hierarquia de poder. Afinal, só há discurso de ódio quando alguém com poder tenta massacrar um outro que não tem poder.

Vamos a exemplos práticos e bem mais próximos da gente. Com a morte da Marielle, veio à tona um discurso de que ela só colheu o que plantou, por ser dos “direitos humanos” e bandidos, que tinha até se envolvido com traficante. Esse discurso é um discurso de ódio por legitimar a violência física (e até assassinatos) de qualquer pessoa com o mesmo perfil de Marielle, pessoas que defendem moradores de favelas, mulheres negras, lésbicas, que entram na política e conseguem visibilidade e apoio pelo que dizem. Não precisa ninguém dizer claramente que se deve matar fulano ou ciclano para se efetivar um discurso de ódio. Este artigo traz com mais detalhes o que se falou contra Marielle.

Outro exemplo é o anti-lulismo. Não é crime não gostar do PT, não votar no PT e fazer críticas às políticas do partido ou a seus integrantes. Não é crime preferir outros nomes, outros partidos. O problema é a demonização, que se dá com o emprego de expressões como “esquerdopatas” e com a defesa do uso de violência contra os apoiadores do partido, como aconteceu nas viagens de Lula ao sul, com oposicionistas chicoteando e apontando armas contra a comitiva do ex-presidente, culminando com os tiros dados nos ônibus que acompanhavam a caravana.

Um último exemplo: defender a volta dos militares ao poder, por meio de um golpe – ou mesmo ficar celebrando a “revolução de 64”, como se fosse algo necessário para o momento atual, é sim discurso de ódio. Tanto porque trata de uma medida que vai contra a constituição, por suprimir a ordem democrática, como por reintroduzir como uma possibilidade todas as violências sofridas no período autoritários contra cidadãos e cidadãs que se opuseram ao regime, e que foram presos, torturados e mortos para que fossem calados. Essa memória não é descartável, precisa ser rememorada a cada instante, ainda mais num momento como esse, em que parece ser cada vez aceitável ouvir gente de alto escalão pregar publicamente que a melhor saída é uma ação do Exército para retomar a moralidade da vida pública no país, porque isso desrespeita frontalmente todas as conquistas políticas e sociais dos últimos 30 anos. Ao não enfrentar esse discurso como ele deveria ser enfrentado, como um discurso de ódio e, assim, um crime, nosso país está permitindo que a violência cresça, se dissemine e alcance patamares inimagináveis. Porque é assim que o discurso de ódio funciona, se materializando em mais violência, psicológica, social e física.

Como saída, para além de construir marcos regulatórios específicos sobre o discurso de ódio (que possivelmente no Brasil seriam usados para criar mais formas de perseguição, diante da Justiça e do governo que temos), o mais importante para combater essa forma de violência é a educação para as mídias, em Portugal chamado de literacia mediática (media literacy em língua inglesa). Que deve ser vista não apenas como o ensino para melhor usar os dispositivos midiáticos, mas sim para que todos sejam capazes de entender como se dá a construção dos discursos, o que há por traz de cada fala, tanto por seu conteúdo, como por sua forma, e tenham a clara noção do que significa reproduzi-las. Temos que educar para que as pessoas utilizem as diferentes mídias com a máxima consciência, e não iludidas por performances, sem ter nem ideia das consequências dos seus atos. Só em um cenário assim teremos cidadania e a possibilidade de ter uma democracia plural de verdade.