Por onde começar

Decidi fazer este blog sobre jornalismo alternativo para servir quase como um diário de pesquisa, que me ajude a parar e refletir sobre os caminhos que estou tomando e o que tenho descoberto pelo caminho. Não sei se escrever estas reflexões será útil à minha tese no final das contas. Mas não estou procurando utilidade. Acho que busco mesmo é um espaço para desabafar, confrontar pensamentos antagónicos que me assombram, desfazer-me da seriedade do texto acadêmico puro por alguns momentos e, quem sabe, ajudar outros que persigam o mesmo caminho, da pesquisa em profundidade propiciada por um doutorado.

O objeto em si me confronta, pois trata-se de uma prática que conheço bem, por um lado, mas que por outro preciso reaprender, problematizar e ressignificar.

E começo falando do que seria esse jornalismo alternativo. Nada mais natural, não? Mas, por enquanto, não vou teorizar. Vou falar dele na prática, e com um bom exemplo. Na noite do dia 26 de abril de 2017, acontecia mais uma invasão a uma favela no Rio de Janeiro. Evento que se tornou tão banal na mídia tradicional que dá pra saber de cor o roteiro do off dos repórteres: “o confronto entre a polícia e traficantes”, “traficantes fizeram disparos com fuzil”, “a polícia ocupou a favela em busca de armas e munições”, X mortos, sem dizer sexo, cor nem se tinham qualquer envolvimento com o crime. E as vozes ouvidas também são as de sempre: o chefe da operação policial, um especialista em segurança pública. Se houver um morador, é muito.

Mas nesta noite, uma cobertura em especial foi completamente diferente e desafiadora. O Coletivo Papo Reto (https://www.facebook.com/ColetivoPapoReto/), grupo que atua no Complexo do Alemão com uma proposta de jornalismo alternativo, ficou por mais de duas horas ao vivo, em transmissão pelo Facebook, com um vídeo em que mostrava a ação policial. O vídeo, que ficou salvo no link https://www.facebook.com/ColetivoPapoReto/videos/1205965126196731/, acessado no dia 27/04/2017, teve 59.044 visualizações, 873 compartilhamentos e mais de 3.600 comentários pouco mais de 18 horas depois de ter ido ao ar.

Em resumo, ao longo de todo este tempo, o repórter (cujo nome eu ainda preciso confirmar), com um telefone celular, capacete e colete de imprensa, mostra a ação da polícia à distância, relatando os tiros, a movimentação dos policiais, detalhando as armas usadas. Também mostra moradores tentando fugir, seja a pé, de bicicleta, moto ou carro, e veículos buscando caminhos alternativos para escapar das balas.

Ao longo da transmissão, o jornalista também contextualiza o acontecimento, resultado da repressão policial após protesto de moradores contra a morte de um adolescente de 13 anos, atingido por uma “bala perdida” durante uma operação policial na favela. Segundo o repórter, não existem balas perdidas na favela, já que as ruas não são retas e as balas, se disparadas, sempre vão parar em algum lugar.

O jornalista relata ainda situações em que já foi perseguido e até agredido por policiais, e por isso reforça a necessidade de tomar medidas de segurança para não sofrer represálias.

Entre os aspetos que mais desafiam o jornalismo está a forma como se dá a interação com o público. São feitos comentários ao longo de toda a transmissão, e claramente o repórter têm acesso a esses comentários em diferentes momentos e responde. Seja criticando-os, por reproduzirem o discurso de apoio à repressão policial como única forma de combate ao crime organizado, ou por reclamarem que o Coletivo Papo Reto só denuncia a ação policial, e não mostra os bandidos. Seja agradecendo quando eram feitos elogios ao seu trabalho. O seu papel, ali, repetia, não era entregar os bandidos, pois isso é o papel da polícia, mas sim denunciar abusos de policiais, que são servidores públicos, do Estado, e deveriam zelar pela segurança dos cidadãos, e não atentar contra eles. Afirmou, assim, um jornalismo com lado.

Mas não só lado. Imerso na história inteira, mas o que se intensifica após 1h35min de filmagem. Que precisa se esconder, foge, sente os efeitos do gás de pimenta jogado pela polícia. Que se revolta ao ver um morador baleado na cabeça, sendo carregado a pé por outros moradores, pois não havia carros para levá-lo ao hospital nem qualquer dos policiais na ação ofereceu ajuda para resgatar a vítima. Que xinga palavrões ao reafirmar que a aquela rotina é inaceitável.

A proximidade de narrativas da mídia alternativa comunitária não é novidade, mas a potencialidade como essa narrativa pode amplificar vozes que antes eram simplesmente silenciadas e pronto é imensa. Tudo bem, tenho interesse no tema, mas estou em Portugal e vi as imagens primeiro sendo compartilhadas por um antigo colega de trabalho, que vive em São Paulo. O relato também foi citado pela Folha de S. Paulo, que cometeu o erro de não indicar o nome completo do coletivo (o chamou de Coletivo Papo).

A realidade das favelas e das comunidades pobres em geral no Brasil está longe de mudar. Mas este tipo de iniciativa mostra que é possível começar a agregar novas versões e vozes às narrativas sociais coletivas, sobretudo quando há conflitos. Sem assistir ao vídeo e lendo, por exemplo, a notícia difundida pelo G1 (http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/morre-jovem-baleado-no-complexo-do-alemao-no-rio.ghtml), a impressão é de que houve um confronto entre policiais e traficantes. O de sempre. Mas, ao assistir o vídeo, fica evidenciado que ali não estavam sendo atacados traficantes, mas sim trabalhadores, cidadãos que pagam seus impostos e que, quando chegarem em casa, vão se deparar com paredes cravejadas de balas ou com algum parente baleado ou até morto. São pessoas, moradoras de favela, cujas vidas importam. E que não podem mais ficar sob o jugo da violência.

Eis meu objeto. Mas ele é muito mais. São 158 grupos do Brasil, de Portugal e da Espanha, que atuam de modo tão heterogêneo, que às vezes fica até difícil atribuir-lhes o mesmo rótulo “alternativo”. Mas ainda não arranjei nome melhor.

Autor: Kamila Fernandes

Jornalista de formação e de paixão, me enveredei pelo universo acadêmico e agora busco questionar os parâmetros mais básicos do próprio jornalismo, numa busca por repensar e até melhorar esta prática. Desde outubro de 2015, faço doutorado em Estudos de Comunicação no Instituto de Ciências Sociais, da Universidade do Minho, em Portugal, tendo como objeto de estudo iniciativas de jornalismo alternativo audiovisual. Minha ideia é compreender que sentidos são produzidos por este tipo de produção que reúne informação e engajamento político.

5 comentários em “Por onde começar”

  1. Oi, Kamila!
    Instigante texto, instigante iniciativa! Desse Brasil que se mobiliza e que pensa é que eles se amedrontam, por que tem força. Vai ser um prazer seguir tuas reflexões. Beijo!

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