Mesmo com toda a promessa da internet de democratizar o acesso à comunicação, o cenário midiático não é dos mais animadores, com uma forte e contínua concentração dos meios de comunicação nas mãos de poucos conglomerados, que criam estruturas que aparentam estimular a liberdade de expressão, mas que na prática exercem um intenso controle de tudo o que é publicado. Sim, mesmo que aparentemente tenha sido iniciado um movimento em que as audiências passaram a se dispersar em diferentes canais, seguindo a tendência de segmentação dos públicos, a imensa maioria das pessoas continua concentrada nas mãos da Globo, da Record, do SBT e companhia limitada – mundo afora, isso não é lá muito diferente.
Mas uma coisa não dá para negar: uma pequena revolução acontece, aos pouquinhos, em diferentes espaços sociais, especialmente nas periferias, por meio de iniciativas de comunicação alternativa comunitária.
Um dos “laboratórios” dessa revolução tem sido as favelas do Rio de Janeiro, onde a violência é mostrada pela mídia tradicional apenas em números e pela voz das autoridades policiais. Mortes causadas pela repressão policial são narradas como resultado de confrontos com troca de tiros, mesmo quando não há provas dos tiros trocados. Pessoas mortas viram suspeitos e normalmente suas histórias são apagadas. O morador é silenciado, só existindo quando há muito choro, comoção, e suas lágrimas motivam cliques.
Os grupos de mídia alternativa de favela nascem da constatação dessas distorções, mas não só por isso: pela necessidade de produzir informação relevante para os moradores da favela, sobre a favela, que não se restrinja a aspetos negativos do cotidiano, mas também tratem de serviços, deem espaço para que pessoas relevantes do local sejam conhecidas e reconhecidas, e mesmo situações que já são noticiadas pela mídia tradicional sejam divulgadas com maior precisão e na dimensão correta.
A experiência de coletivos de comunicação alternativa foi narrada por três expoentes do mídia-ativismo de favela do Rio de Janeiro, Raull Santiago, do Coletivo Papo Reto, Rene Silva, do Voz das Comunidades, e Buba Aguiar, do coletivo Fala Akari (inclusive eu tenho falado sobre o trabalho do Papo Reto há algum tempo, como neste post). Os três estiveram presentes a uma mesa redonda sobre as narrativas da favela, realizada no Centro Cultural Belchior, na Praia de Iracema, no dia 19 de novembro de 2019. O evento, que contou ainda com Kdu dos Anjos (Centro Cultural Lá da Favelinha, MG), Talmon Lima (La Casa du’z Vetim, CE) e Gab Savir (GhettoRoots, CE), além de Preto Zezé (CUFA), não teve a cobertura de nenhum meio de comunicação – o que comprova o quanto falar sobre favela segue sendo um assunto marginalizado e invisibilizado pela mídia convencional.
A conversa foi longa, abrangendo o diagnóstico da situação de exclusão das periferias pelo país afora, mas sobretudo apresentando estratégias de empoderamento e fortalecimento da organização de base das comunidades, passando inclusive por questões relacionadas à política-partidária.
Em resumo, os palestrantes reforçaram o quanto a favela representa uma enorme potência, de capital social e econômico, sendo fonte de projetos que podem gerar muita renda a partir da cultura que naturalmente já que é difundida pelos moradores locais; mas também o quanto essa potência é boicotada pela ausência de políticas públicas e pelo foco do Estado em insistir na guerra às drogas, que na verdade se converte em uma política de extermínio dos moradores. “Temos que provar até a nossa morte”, disse Raull Santiago, ao se referir à morte de Ágatha Felix, de 8 anos, no Complexo do Alemão, por um tiro de rifle disparado por um policial. O governo do Estado do Rio de Janeiro e seus apoiadores tentaram se esquivar da responsabilidade, atribuindo a bandidos a morte da menina, mas um laudo pericial acabou por comprovar o que os moradores diziam desde o primeiro momento, que a bala foi oriunda de uma arma disparada pela polícia, mesmo sem que houvesse qualquer ameaça no local.
Por sinal, não é de hoje que a violência de Estado assombra os moradores de favelas, nem é exclusividade de um governo de direita – ainda que a situação tenha piorado. Por isso, as falas reforçaram uma posição de autonomia dos movimentos sociais embrenhados nas favelas: nem à direita, nem à esquerda, o que os ativistas defendem é a agenda da favela, que precisa ser pensada em toda a sua complexidade, que inclui, por exemplo, a forte presença das igrejas evangélicas. “Não dá para negar que as igrejas estão dentro das comunidades e que exercem grande influência, mas também levam serviços”, discorreu Raull.
O trabalho de base é apontado como única saída para transformar a realidade social das favelas, a partir de ações que surjam de dentro das próprias comunidades, não de fora, como benesse de parte das elites. “Não queremos receber ajuda de ninguém, queremos trocar”, ressaltou Kdu.
Uma das maneiras de articular as bases é pelos meios de comunicação alternativa, porém isso nem sempre é financeiramente viável. Perguntei a Raull, Rene e Buba se dá para pagar as contas apenas atuando como comunicador alternativo, e os três apontaram sérias dificuldades para isso. Raull e Buba têm outros trabalhos, Rene não, e disse que, depois de muitos anos de luta, consegue se dedicar só ao Voz das Comunidades. De todo modo, para Buba, atuar na comunicação alternativa ajuda a abrir portas, além de ser uma das formas mais potentes de gerar protagonismo dentro das comunidades mais vulneráveis e, com isso, levar a transformações sociais.
Aproveitei para gravar em vídeo um pouco do que pensam esses três importantes comunicadores e ativistas, para saber o quanto a mídia alternativa pode ser transformadora. Também pedi que cada um mandasse um recado aos estudantes de jornalismo. Os trechos das entrevistas seguem a seguir (deem um baita desconto para as imagens sem foco, culpa exclusiva desta cinegrafista amadora).