Em defesa do jornalismo ativista: o caso #VazaJato, do The Intercept

Desde que o The Intercept Brasil começou a trazer à tona trechos de um vazamento de conversas entre integrantes da Lava Jato, incluindo o ex-juiz Sérgio Moro e procuradores, paralelamente começou uma forte discussão no Twitter sobre o que é o jornalismo e sobre quais são os direitos e deveres do “bom jornalismo”.

Grande parte da discussão gira em torno da ideia de que o The Intercept é “ativista”, por se aliar a hackers para deliberadamente prejudicar a Lava Jato e, como consequência, o governo Bolsonaro. Declarações dadas em momentos diferentes por um dos fundadores do grupo de comunicação, Glenn Greenwald, com críticas ao governo de extrema direita, são usadas como prova do ativismo, o que é alimentado ainda mais pelo fato de Glenn ser casado com o deputado federal David Miranda, do PSol.

Essa não é uma discussão nova, evidentemente, e não é por acaso que é uma das questões que abordo na minha tese. Por sinal, entre minhas principais referências bibliográficas está o livro da pesquisadora norte-americana Adrienne Russell, Journalism as Activism, de 2016 (falei mais sobre o livro em outro post). Na obra, um dos jornalistas-ativistas entrevistados era justamente Glenn, que tem uma citação bastante pertinente: “Não há problema em ser um ativista ou um jornalista; essa é uma falsa dicotomia. O problema é ser honesto ou desonesto. Nem todo ativista é jornalista, mas todo jornalista de verdade é um ativista”[1] (Russell, 2016, p. 109 – tradução livre).

No Twitter, Natalia Viana, uma das fundadoras da Agência Pública, reacendeu essa discussão:

Obtendo esse tipo de resposta:

Foi o próprio jornalismo que ajudou a construir a ideia de que um jornalismo isento e de qualidade necessariamente separa a informação da opinião, é fundamentalmente descritivo, imparcial e equilibrado, construindo um discurso neutro que permita que o público chegue às suas próprias conclusões de maneira livre e sem a influência de qualquer viés. E esse ideal foi apropriado pelo senso comum, sendo por isso mega comum ouvir da boca de não jornalistas o que deve ser ou não deve ser um bom jornalismo.

Só que também não é de hoje que se demonstra o quanto esse ideal é inalcançável, já que o discurso (seja ele qual for) nunca é neutro, passando sempre por escolhas, que no caso do jornalismo, acaba por beneficiar quase sempre os detentores do poder, como concluiu Stuart Hall (1978). Já tratei disso em apresentações acadêmicas e em outros posts, e por isso estou entre os que defendem a urgência de se superar o paradigma da objetividade, pois insistir nesse modelo acaba sendo um tiro no pé, justamente porque sempre vai haver algum viés a ser apontado, algum lado favorecido, e outro prejudicado. Sempre, sempre, sempre.

Ainda assim, não é necessariamente a mesma coisa ser um jornalista e ser um ativista. Um jornalista pode ser alguém comprometido unicamente com a notícia, que busca executá-la com acuidade e boas técnicas para que alcance um grande público e, com isso, se torne relevante (naquele modelo em que as notícias são vistas como um produto à venda, tema tratado há bastante tempo pela professora Cremilda Medina). Já um ativista (seja de que área for) se preocupa com causas sociais, em busca de gerar transformações, e por isso atua com determinados objetivos, aplicando diferentes estratégias para alcançá-los. Além disso, o ativista busca mais do que visibilidade, mas adesão à sua causa, o que faz com que sua relação com o público seja necessariamente mais próxima e intensa.

O jornalista pretensamente puro atua geralmente tendo como base o modelo antigo de comunicação de massa, em que produtores e consumidores estão em lados opostos, bem separados, e em que o fluxo da comunicação é unidirecional, partindo sempre do produtor em direção ao consumidor. Os ativistas atuam em rede e, nesse tipo de estrutura, a comunicação é rizomática, como argumentam Santana e Carpentier (2010), com diferentes conexões, que fazem com que a comunicação parta de diferentes origens, circulando em diferentes direções, e sendo transformada a partir da participação de diferentes atores.

A série da #VazaJato, do The Intercept Brasil, é exemplar quanto a todas essas diferenças. Logo na primeira publicação da série, o grupo jornalístico apresentou um texto em que expôs os procedimentos adotados e que levaram à decisão de trazer à tona as conversas vazadas, sob a justificativa de que “A liberdade de imprensa existe para jogar luz sobre aquilo que as figuras mais poderosas de nossa sociedade fazem às sombras”. Essa postura reforça a antiga visão do jornalismo como watchdog, ou cão de guarda, da sociedade, e não necessariamente distancia a proposta do The Intercept de outras publicações tradicionais. Esse distanciamento se dá principalmente na forma como os jornalistas que atuam na empresa se expõem em outros espaços de visibilidade. Como exemplo, em diferentes postagens no Twitter, o editor executivo do site, Leandro Demori, deixou claro o posicionamento da equipe, ao enfatizar que os objetivos do grupo não se restringem a deixar a sociedade informada; busca-se gerar transformações sociais reais.

Esse posicionamento é reforçado ainda em entrevistas, dadas aos mais diferentes programas, tanto do mainstream, como alternativos, podcasts, blogs, com viés de esquerda, mas também de direita. Por sinal, as conexões entre diferentes atores do ambiente mediático que vão se desenhando ao longo dessa cobertura são bastante heterogêneas e absolutamente incomuns, com parte do vazamento sendo partilhado com uma figura como Reinaldo Azevedo (notório anti-petista) e outra parte com a Folha de S. Paulo (antiga entusiasta da Lava Jato), com o intuito de afastar a cobertura de um viés político-partidário e enfatizar sua relevância jornalística, mas sem deixar de demarcar a postura ativista, em prol de mudanças sociais. A fala de Glenn ao Democracy Now, programa de jornalismo alternativo dos Estados Unidos, confirma esse posicionamento.

Mas é ruim, ou errado, ser um jornalista ativista, que expõe seu ponto de vista e suas escolhas, e não se restringe a informar, mas age para gerar transformações sociais reais? De forma alguma. Mais do não ser crime, como argumentou a Natalia Viana, ser um jornalista ativista é mais do que nunca necessário nessa nossa sociedade da desconfiança (Rosanvallon, 2008), em que tudo é desacreditado, o que, ao mesmo tempo, favorece as chamadas fake news, que se apoiam na fórmula da objetividade para alcançar algum efeito de verdade e, assim, enganar os “tontos”. Se realizar um trabalho que busca ser realmente relevante para a sociedade, sem omitir posicionamentos, dando transparência à produção, sem maquiagens que simulem uma neutralidade inalcançável, é ser ativista, que sejamos todos jornalistas ativistas, pois talvez esse seja o melhor caminho para restabelecer a credibilidade dos media e, com isso, a própria relevância do jornalismo.

Referências

Hall, S. (1978). The social production of news. In S. Hall (Ed.), Policing the crisis: Mugging the State, and Law and Order. London: Macmillan.

Rosanvallon, P. (2008). Counter Democracy: Politics in an age of distrust. Cambridge, New York: Cambridge University Press.

Russell, A. (2016). Journalism as Activism – Recording Media Power. Cambridge: Polity Press.

Santana, M., & Carpentier, N. (2010). Mapping the rizhome. Organizational and informationsl networks of two Brussels alternative radio stations. Telematics and Informatics, 27(2), 162–176. Retrieved from http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0736585309000483


[1] Texto original: “It is not a matter of being an activist or a journalist; it’s a false dichotomy. It is a matter of being honest or dishonest. All activists are not journalists, but all real journalists are activists”.

Escola sem Partido coisa nenhuma… Produzir conhecimento é uma ação política!

Depois que conheci a Análise do Discurso (sobretudo Charaudeau e van Dijk, inicialmente) e Stuart Hall, passei a ter como pressuposto de vida a ideia de que não existe neutralidade. Nem mesmo as bulas de remédio são neutras, quanto mais matérias jornalísticas e pesquisas acadêmicas. Quem produz discurso sempre se posiciona, nem que seja ao dizer que não se posiciona, e que é neutro e objetivo. Ou afirmando em letras garrafais que não tem ideologia e que vai combater as “ideologias nefastas”. Como o cimento que cola os tijolos de uma casa, a ideologia – seja ela hegemônica, não-hegemônica ou até contra-hegemônica – está sempre ali presente em cada pensamento que produzimos, e não pode ser simplesmente descartada. No máximo podemos identificá-la, tomar “consciência” de sua existência, como dizia Gramsci, e a partir daí procurar refletir sobre ela e, se for o caso, se reposicionar, se contrapor, ou até mesmo assumir essa ideologia, em uma decisão que nunca é plenamente racional, e que passa por nossos sentimentos, conflitos pessoais, interações, enfim, por todas as mediações que nos fazem ser quem somos.

Por mais que para mim essa questão esteja mais do que esclarecida (é impossível ser neutro e pronto!), a negação da possibilidade de se posicionar ainda está a plenos vapores quando se trata da produção e difusão do conhecimento, o que inclui a escola (e a universidade) e o jornalismo. Projetos como o da Escola sem Partido partem dessa ideologia positivista que defende a objetividade como algo possível, necessário e alcançável, bastando para isso que o professor em sala de aula se abstenha de falar suas próprias opiniões e se atenha aos fatos. O que omite o pressuposto de que os fatos a serem relatados foram escolhidos entre inúmeros outros, e a própria forma como o relato é feito pressupõe um viés, que beneficia um lado e prejudica ou até invisibiliza outro (afinal, Portugal descobriu o Brasil ou invadiu o território, que já era ocupado por uma vasta população indígena à época? A ação dos EUA na Síria é um ato de combate ao terrorismo ou uma série de crimes humanitários?). Vieses que existem em todas as disciplinas e que definem o que se deve aprender.

A defesa da neutralidade, no fim das contas, contribui para o desconhecimento, para a falta de reflexão, limitando o aprendizado, e não o inverso, como os ideólogos dessa política querem fazer crer. E não importa o quanto se discuta, os argumentos rasos nem tentam ser razoáveis, basta “extirpar Paulo Freire” das salas de aula, combater o “marxismo cultural”, impedir que professores falem de “feminismo” e outras ideologias nefastas, e retomar as escolas de antigamente, que essas sim eram boas. Tá… E se fizermos exatamente o contrário dessa receita? E se incentivarmos cada vez mais a produção e a difusão de conhecimento engajados em causas sociais?

Pois é, nem só de Escola sem Partido e objetividade vive o mundo. A necessidade de assumir posicionamentos e de produzir uma ciência engajada tem sido amplamente discutida nos meios acadêmicos (pelo menos nas ciências sociais). Mais do que isso, discute-se a necessidade de a ciência deixar seus gabinetes e passar a se envolver diretamente em determinadas lutas, para efetivamente contribuir para gerar transformações sociais.

Trago três exemplos de discussões que vi recentemente em eventos acadêmicos que aconteceram no final do ano passado. O primeiro deles no Congresso da Ecrea, com a fala de uma das congressistas principais, Lina Dencik, que defendeu a necessidade de estabelecer estratégias de resistência na sociedade datatificada para se buscar justiça social no acesso aos dados. Fala que levou em conta o quanto estamos nas mãos de meia dúzia de empresas de tecnologia, que têm como principais ativos os nossos dados, nossas informações, que utilizam a seu béu prazer, lucrando bastante, para gerar mais dependência, mais lucro, e, como o caso da Cambridge Analytica demonstrou, para nos manipular deliberadamente com fins políticos. Para Dencik, os acadêmicos precisam deixar de se contentar em simplesmente estudar os dados fornecidos por essas empresas, como se fossem neutros, e ter postura crítica em relação a essas elas, ainda que isso signifique não ter acesso a todos os dados e sobretudo financiamentos que elas mesmas liberam para a pesquisa. Postura crítica que pode significar, então, não ter dinheiro para pesquisar, mas ter independência.

Em um painel sobre comunicação política também no Congresso da Ecrea, Natalie Fenton falou sobre um novo projeto que desenvolve na Inglaterra com comunidades vulneráveis, buscando compreender o que as pessoas pensam sobre o futuro, e o que podem fazer para ter mais esperança. Projeto motivado pela percepção de que as desigualdades sociais estão cada vez mais profundas, com uma fenda enorme entre os detentores do poder e os pobres, que são levados a não sonhar, a não ter perspetivas sobre para onde vão, sobre como podem ter um mundo melhor, o que gera um enorme vazio e descrença com relação a todas as instituições, ao governo, aos partidos (alguma semelhança com o Brasil não é mera coincidência). Fenton considera que a esquerda também contribuiu para difundir esse sentimento, ao não apresentar propostas alternativas e se distanciar das bases. No entanto, ela não rejeita o projeto político da esquerda, e sim propõe que este seja reformulado, com uma mudança no pensamento socialista que promova as liberdades, e que alimente um pensamento utópico anti-nostalgia, a partir de uma ação participativa que de fato leve em conta o que as pessoas pensam, e não o que os pesquisadores e os políticos acham que elas pensam. Uma ação liderada pelos próprios cidadãos “comuns” e que contribua para levá-los não apenas de volta ao trabalho, mas à política como algo essencial e transformador de suas vidas.

Por último, cito a fala de uma outra pesquisadora (não é à toa que são todas mulheres!), Charlotte Ryan, dos Estados Unidos (esta eu escutei em um congresso especificamente sobre ativismo, Mediaflows, também no final do ano passado). Ryan é reconhecida pesquisadora na área do “framing”, mas ultimamente tem se dedicado a estudar estratégias midiáticas na organização de movimentos comunitários, e defende que a produção de conhecimento não pode estar dissociada da atuação política. Por isso, ela participa ativamente de movimentos sociais enquanto investiga suas práticas, e argumenta que, desta forma, a pesquisa acaba sendo coletiva, pois os ativistas são coprodutores ativos do conhecimento ali produzido.

Conferência de Charlotte Ryan no Congresso Mediaflows, em Valência (novembro de 2018).
Conferência de Charlotte Ryan (à direita) no Congresso Mediaflows (novembro/2018)

Como o objetivo deixa de ser meramente publicar em determinadas revistas “referees” e passa a ser contribuir para gerar transformações sociais, Ryan defende que a produção acadêmica precisa ser clara e compreensível para os ativistas e as comunidades em geral, tendo de adotar uma linguagem mais acessível, e que tudo o que for produzido seja sempre compartilhado com essas organizações, para que seus integrantes possam discutir os resultados e refletir sobre suas próprias práticas, de modo a aprimorá-las.

O problema, nos três exemplos, começa dentro do próprio campo acadêmico, que prioriza números, a tal objetividade e publicações em revistas de renome. Além de valorizar cada vez mais a aproximação com um certo mercado, que financia pesquisas para obviamente se beneficiar, não importando se elas prejudicam a população. Ou se uma parte muito volumosa da população deixa de ser objeto de estudos, porque, afinal, não está entre os detentores do poder, e por isso não interessa. Mas esses constrangimentos não podem nos paralisar. Produzir conhecimento que leve a melhorias de vida, sobretudo dos grupos sociais que mais sofrem injustiças sociais, não pode ser visto como algo secundário. Deve ser o objetivo principal de qualquer pesquisa, de qualquer área de atuação. E, sob essa ética, uma das obrigações do pesquisador, do professor e do jornalista é encontrar maneiras de superar as limitações e, assim, alcançar seus objetivos. Com a máxima transparência, ao indicar seus posicionamentos, seu ponto de partida, e seus objetivos, e com a máxima abertura para ouvir e incorporar a participação das pessoas mais diversas e plurais possíveis. Afinal, produzir e difundir conhecimento, querendo ou não, é sim uma ação política.

Marielle Franco e Mmame Mbage, presentes!

O assassinato da vereadora Marielle Franco na noite da última quarta-feira, dia 14 de março, no Rio de Janeiro, repercutiu com um toque a mais de indignação na Espanha. Isso porque um imigrante do Senegal, Mmame Mbage, de 35 anos, morreu um dia depois, no início da noite do dia 15, ao ser perseguido por policiais no coração de Madrid.

Aparentemente a morte de Mbaye foi por ataque cardíaco. Mas isso não impediu que milhares de pessoas acusassem a polícia madrilena de assassinato. Em protestos tanto na quinta, dia 15, como neste dia 16, manifestantes gritavam “Polícia assassina” e “A polícia tortura e assassina”, entre outros gritos de indignação. Em paredes e na porta de alguns comércios, viam-se colados panfletos que diziam “Mmame Mbage presente!”, em clara associação à morte de Marielle.

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Vivendo há 12 anos na Espanha, Mbage permanecia ilegal, mesmo depois de inúmeras tentativas de regularizar os “papéis”. O que acontece, segundo relatos de amigos que falaram a periódicos locais, entre eles El Salto, por obstáculos impostos pelo próprio serviço de imigração.

Ilegal, Mbage trabalhava como vendedor ambulante ou fazendo pequenos bicos temporários. Apesar das dificuldades, era querido não só pela comunidade senegalesa, mas também engajado com os demais ambulantes, participando até de uma organização sindical criada para defendê-los.

A própria gestão do ajuntamento de Madrid admite que, no dia em que Mbage morreu, a polícia cumpria uma ação de retirada dos vendedores que atuam no centro de Madrid, vendendo réplicas de bolsas e outros produtos em tapetes no chão, os chamados “manteros”. Só não admite que a polícia possa ter errado, ao perseguir por vários quarteirões os vendedores. Testemunhas dizem ter visto Mbage correr ao ser perseguido por policiais sobre motos, até não aguentar mais.

A manifestação do dia 16 começou em uma praça emblemática para a comunidade negra madrilena, a Praça Nelson Mandela, no bairro de Lavapiés, a poucos metros de onde Mbage morreu. Milhares de pessoas participaram do protesto, mesmo sob a coação da polícia, equipada com inúmeros carros, helicóptero e armas. E mesmo que, no dia anterior, logo após a morte do vendedor ambulante, a revolta espontânea da comunidade local tenha sido calada à base de cassetetes e tiros de bala de borracha atirados pela polícia.

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Além de acusar a polícia, a comunidade que se manifestava também repelia qualquer tipo de racismo e denunciava a criminalização dos imigrantes. “Nenhum ser humano é ilegal”, gritavam.

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O racismo, por mais irracional que seja, segue sendo um dos mais graves problemas vividos na contemporaneidade. Ao que se soma a pobreza, o sexismo, a ganância e a falta de empatia e de senso de justiça que povoa as mais diferentes sociedades, em nome de valores tão egocêntricos, como o nacionalismo e o dinheiro.

Por isso, a indignação vivida por causa da morte de Marielle, no Brasil, e de Mmame Mbage, em Madrid, precisa ser expandida, ganhar volume, alcançar outros espaços, outras dimensões. Essa indignação precisa ser motor de resistência, para quem sabe gerar mudanças. Porque não dá mais para aceitar tanta desumanidade.

Claro que são duas mortes que aconteceram em contextos diferentes, em países diferentes. Mas que tem a violência policial contra negros como ponto em comum. E a revolta contra esse ponto comum me fez sentir, ao participar do protesto contra a morte de Mbage, como se estivesse me manifestando contra todas as mortes violentas sofridas por negros e pobres no Brasil. Contra o assassinato de Marielle. Porque, no fundo, somos todos gente, que merecemos boas condições de vida, oportunidades, tudo o que está sendo negado há tempo demais contra uma enorme parcela da população só por causa da cor da pele.

Feminismo e democracia: quando votar não basta

Como acontece todos anos, no dia 8 de março vendedores ambulantes saíram às ruas para vender flores, alguns homens decidiram “homenagear” suas parceiras com presentinhos, e houve muita discussão nas redes sociais, com muitas mulheres cobrando respeito e igualdade, em vez de um breve parabéns. Mas houve também mobilizações nas ruas mundo afora, que culminaram na greve das mulheres na Espanha.

A greve do 8M foi pensada para acontecer em todos os sentidos: nos cuidados domésticos, no trabalho, nos estudos. E houve muitas críticas no período de convocação do protesto, inclusive de grupos de esquerda, que consideravam que a greve era elitista, que só poucas mulheres teriam como parar de verdade, que de uma certa forma era até opressora por colocar em risco o trabalho das mulheres mais vulneráveis. Mas claramente essa resistência tinha outro fundo: como assim, os homens teriam que fazer tudo, até cuidar de si mesmos, por um dia? Seria um desastre.

O protesto pode não ter tido a participação de 100% da população feminina, mas imagens do protesto que tomou as ruas do centro de Madrid deixam claro que a adesão foi fulminante. Milhares nas ruas. Um grito de basta às desigualdades que afetam salários, carga horária de trabalho, acesso a postos de poder, perspectivas de vida. Em pleno 2018, o abismo entre homens e mulheres segue imenso, e não venham me dizer que “ah, mas muita coisa mudou, as mulheres podem até votar e ser votadas… As mulheres podem trabalhar como quiserem, podem ser motoristas, trabalhar na construção civil, ser engenheiras. Todas as barreiras já foram ultrapassadas”.

 

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Greve feminista na calle de Alcalá, em Madrid. Foto: Juanlu Sánchez/ElDiario.es

 

Antes de pensar em como tudo mudou, pense e quantas mulheres chegam de fato a postos de liderança. Quantas mulheres lideram governos, grandes empresas? Quantas mulheres são reitoras de universidades? Podemos ser maioria no corpo de professores, mas dificilmente chegamos aos cargos de direção. Por quê? Por alguma incapacidade inata relacionada ao sexo? Não, evidentemente. É pela persistência de um sistema machista, que sutilmente limita a participação da mulher nas mais diferentes esferas.

E justamente por essa desigualdade ser estrutural, está mais do que absorvida por nossas estruturas, inclusive pelo modelo democrático representativo hegemônico. Sim, votamos, e até somos a maioria dos votantes, podemos ser votadas, mas não conseguimos ser efetivamente representadas.

Por causa dessa falta de equivalência entre a demanda social e o que é efetivado nas esferas democráticas é que devemos buscar formas de participação alternativas, que não necessariamente estejam contempladas pelas instituições oficiais. Movimentos feministas que possam discutir o papel da mulher em diferentes contextos, na família, na economia, na política, na educação, na saúde, na ciência, no meio ambiente, enfim, são certamente o melhor caminho para avançarmos para um nível de participação bem mais abrangente do que temos hoje.

Uma participação que não se restrinja ao voto. Que nos permita ter acesso de fato ao poder. Me apego aqui à definição de participação de Nico Carpentier (2017), que tive a honra de ter como professor durante toda esta semana e que trabalha o conceito a partir de um ponto de vista muito mais profundo, ao considerar a participação como um ato político.

 

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Nico, durante aula sobre teoria do discurso, na Universidade de Uppsala

 

Pela visão de Carpentier, há diferentes intensidades de participação, e quanto mais os não-privilegiados, engajados em certo tema, têm acesso a esferas de poder e influenciam nas tomadas de decisão, maior é o nível de participação, e, assim, mais ampla é a democracia.

O que nós mulheres temos ainda é muito pouco. Não basta. Não basta ver apenas meia dúzia de candidatas, muitas delas esposas, irmãs ou filhas de políticos de carreira, que não podem mais se candidatar (pela ficha suja, por exemplo). Não basta receber uma rosinha e um raso parabéns no dia 8 de março. Não basta estar no mercado de trabalho fazendo o trabalho “dos homens”. Queremos igualdade de acesso, de oportunidade, de voz. Queremos receber os mesmos salários. Queremos ser ouvidas e que nossa opinião influencie efetivamente as decisões. Queremos ser vistas como parceiras, não como as únicas responsáveis por todos os cuidados domésticos e dos filhos. Queremos que respeitem nossos corpos e nosso modo de ser, que não venham nos impor mais padrões estéticos nem morais que na verdade contemplam só o bem-estar dos homens. Queremos de fato participar.

Comunicação popular e alternativa e o papel da proximidade

Há duas semanas, iniciei minha jornada em Madrid, onde fico por três meses para complementar minha pesquisa de doutorado. É como um doutorado sanduíche, que tem no Brasil. Neste percurso, tenho como tutor o professor Alejandro Barranquero, da Universidad Carlos III de Madrid (UC3M). E nesse tão pouquinho tempo, já tive acesso a algumas experiências de comunicação alternativa e popular tanto aqui da Espanha, como da América Latina. Uma comunicação marcada pela proximidade, acima de tudo, e que tem tudo a ver com meu objeto de estudo, o jornalismo alternativo.

A primeira experiência foi um documentário chamado Experimenta Distrito. Tive a chance de ver a estreia do filme de graça no dia 10/02, na Cineteca do centro cultural Matadero, em uma sala lotada de gente que havia participado de alguma forma daquela produção. Não como realizadores do filme, mas como “personagens” reais responsáveis por colocar em prática os projetos que estavam sendo retratados na obra.

 

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Sala da Cineteca do Centro Cultural Matadero

 

As diretoras do filme, Cecília Barriga e Raquel Diniz, também estavam presentes e participaram de um debate logo depois da exibição do filme. O documentário tinha um objetivo claro de registrar a execução de um programa de construção de projetos coletivos, solidários, o Experimenta Distrito, criado para fortalecer a identidade dos distritos (bairros) de Madrid, a partir da criação de laços sociais entre os moradores. Tudo era pensado e executado pelos moradores locais, sob uma orientação inicial de mediadores, e com muito debate, troca de ideias e apoio mútuo. Entre os projetos criados estão uma rádio comunitária, uma horta e um jardim público, uma rede de acompanhamento e cuidado dos idosos, a sinalização de um percurso que levava à escola, para torna-lo mais alegre e seguro. Ideias que se tornaram reais pelas mãos daqueles moradores.

Sentada em meio àqueles desconhecidos, aos poucos eu ia identificando os que estavam ao meu lado, ao vê-los em ação na tela. E os via sorrindo, não por vaidade, mas porque estavam orgulhosos do que tinham feito. Assim, mesmo não tendo sido feito pelas mãos da população que estava à frente dos projetos, o filme acabou se tornando parte do programa Experimenta, como um momento de celebração coletiva, mas também de reflexão, de memória e de compromisso para que ele tipo de atitude se repita. Porque, como disse uma das participantes durante o debate pós-exibição do filme, a experiência mostrou que a ação cidadã precisa mudar, ser mais ativa, criar demandas ao poder público e até colocar a mão na massa, quando há o interesse coletivo. Não que isso vá isentar o poder público de fazer as coisas: pelo contrário, vai pressionar a também agir, em resposta à ação cívica. Uma mensagem que reforça a impressão de que a saída para fortalecer a cidadania é mesmo pela comunidade, ou seja, pelas relações de proximidade, fortalecidas pelo interesse de fazer o bem comum, como tem defendido a professora Cicilia Peruzzo.

Dia 13/02 foram relatos da América Latina que me tocaram, em uma palestra na UC3M em que participaram a ativista e realizadora argentina Paula Kuschnir, que integra o coletivo Wayruro de Comunicação Popular, o professor Ramón (Moncho) Burgos, da Universidad Nacional de Salta, no norte da Argentina, e Daniel Muñoz, doutorando em comunicação e que desenvolveu projetos de comunicação comunitária em audiovisual em Cuba. Foram três relatos diferentes, mas que reforçaram as potencialidades das práticas comunicacionais próxima das comunidades.

 

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Daniel, Paula e Moncho, logo após a palestra na UC3M

 

Paula falou um pouco da experiência do Wayruro, um coletivo que já tem 23 anos de existência, e que atua especificamente no norte da Argentina, em Jujuy. A atuação é bem próxima dos movimentos sociais e a ideia do grupo é ser mais do que um meio de produção, mas uma semente que espalha a comunicação, que facilita o acesso às ferramentas comunicacionais, ao realizar capacitação, pesquisa. Fazendo que com o produto dessa comunicação seja um elemento que contribua de fato para determinada luta social, inclusive na gestão e no planejamento dessa luta, como um meio de diagnóstico para ações estratégicas.

Moncho falou um pouco da necessidade de se discutir a comunicação popular e alternativa na universidade. No curso em que atua, ele conseguiu criar uma cátedra específica sobre o assunto, inserida no curso de jornalismo, o que tem contribuído para desconstruir a ideia de que a formação em jornalismo deve ser somente voltada para o mercado, para as redações comerciais. Não, profissionais da área também podem atuar justo a comunidades das mais diversos matizes, mas, para isso, é importante ter em mente que não deve chegar ali com um discurso paternalista de “dar voz aos sem voz”, repassando seus conhecimentos unilateralmente, como se aquela comunidade fosse só um objeto. Não, a comunidade é sujeito, tem conhecimentos relevantes e deve ser empoderada pelos meios de comunicação populares e alternativos, não objetificada.

Daniel, por fim, falou de sua experiência em Cuba, onde estudou audiovisual e contribuiu em projetos que desenvolveram documentários comunitários. Um deles, “7 y 50” (2015), apresentava relatos de moradores de uma comunidade rural que eram contrários ao fechamento de uma fábrica de conservas, onde muitos ali trabalhavam. O documentário foi exibido em um canal de televisão, gerou comoção e, com isso, o governo cubano decidiu desistir de fechar a fábrica. Daniel falou também de outro projeto cubano, “Camara Chica”, uma produção toda realizada por crianças, como mostra este vídeo sobre os bastidores do filme.

Por fim, assisti outro documentário, mais uma vez na Cineteca do Matadero, desta vez produzido nos Estados Unidos, “Radio Unnameable” (2012), que conta a história de um locutor de rádio, Bob Fass, que tinha um programa todas as madrugadas na rádio novaiorquina WBAI desde os anos 1960. Pelas ondas do rádio, Bob acabou construindo uma comunidade também offline que, em mais de um momento, se mobilizou, integrando ativamente, por exemplo, as manifestações contra a guerra do Vietnã, pela paz. As ações offline mobilizadas pelo programa de rádio foram múltiplas, começando com uma festa no aeroporto, passando pela limpeza de ruas públicas que estavam lotadas de lixo, e culminando com protestos. Sendo que a rádio e Bob não eram os organizadores, mas o espaço em que essa organização tomava corpo pela participação coletiva.

Todos esses relatos trazem experiências comunicacionais muito diferentes, mas com pontos em comum. O principal, acredito, é a clara relação que a comunicação precisa ter com a comunidade, com as pessoas que compõem o seu entorno. Comunicar significa se relacionar, ter vínculos, e isso não se dá unilateralmente. É preciso reciprocidade, participação, para ser uma comunicação efetiva. E quando falamos de processos comunicacionais alternativos ou populares (termo usado preferencialmente por Paula, a partir do que traz Paulo Freire), essa proximidade se impõe como algo ainda mais necessário. É vital para a existência de uma comunicação alternativa. O que inclui o jornalismo alternativo. Não dá para falar sozinho, nem falar pelos outros simplesmente, quando a proposta é alternativa. É preciso estabelecer diálogos. Afinal, como apresentou Paula, pela perspectiva de Paulo Freire, a comunicação popular é participativa, política, contrainformacional e libertária. Não podemos esquecer disso.

Linguagens híbridas, humor e muita criatividade no jornalismo alternativo audiovisual

Como eu já deixei claro em outros posts, meu objeto de pesquisa é o jornalismo alternativo, em geral, mas me interessa especialmente a prática audiovisual. O que grupos jornalísticos alternativos produzem e publicam em vídeo. Comecei a me interessar por causa dos minidocs da Agência Pública, e pela produção instigante dos meus amigos do Coletivo Nigéria (escrevi um pouco sobre ambos em artigos apresentados em eventos acadêmicos que dá pra acessar aqui, aqui e aqui), mas quando comecei a pesquisar, vi que muita coisa estava acontecendo nessa área. Desde grupos que utilizam a transmissão em streaming para mostrar violações de direitos humanos, como o Papo Reto faz nas favelas do Rio de Janeiro (já falado aqui), até os que mostram ao vivo manifestações sociais, até os que produzem documentários em longa, média ou curta metragem, reportagens, entrevistas, vídeo montagens animados… Os formatos são tão variados e estão cada vez mais híbridos que fica até difícil apresentar definições claras do que eles são exatamente.

Um grupo que tem me chamado a atenção tanto pelo conteúdo como pela performance é o Justificando, iniciativa que fala sobre justiça e direitos humanos. O grupo passou a atuar em parceria com a Carta Capital, mas segue independente, no sentido de estabelecer práticas que desafiam a própria prática jornalística tradicional, se fincar em uma posição crítica e, em grande parte do tempo, contra-hegemônica. Fora tudo isso, a iniciativa experimenta novas linguagens e busca tratar diretamente de temas subnoticiados ou até omitidos pela mídia tradicional, na defesa declarada de minorias sociais.

Apesar do tema Justiça parecer árido, o grupo decidiu abrir espaços para desmistificá-lo, e isso acontece principalmente nas produções em vídeo. São produzidos regularmente quatro programas, Justificando Entrevista, Coisas que você precisa saber, Jogos de Poder e Explica Aí. O primeiro, claramente, é um programa de entrevistas, e mantém o formato tradicional, dando voz a professores de direito, juristas, jornalistas e outros profissionais que atuam em temas considerados relevantes para a busca de justiça social. Vou me deter mais no segundo programa, o Coisas que você precisa saber, que achei o mais inovador.

O programa é apresentado por Igor Leone, que é apresentado em uma postagem do Facebook como “anti-jurídico, esotérico e crítico”. Vestindo uma camisa branca de mangas longas, mas dobradas até ser possível ver uma tatuagem no antebraço, gravata e óculos de armação grossa, o apresentador traz à tona uma série de informações, ilustradas digitalmente atrás de si, seja com vídeos, fotos, ilustrações, mesclando humor, criticidade e ironia.

Os temas são ancorados em assuntos do momento. O mais recente que foi ao ar tratou de situações de “tiranias”, tema que vai resultar em uma minissérie a ser apresentada nas próximas semanas. Neste programa, que foi ao ar no último dia 29 de agosto, Igor Leone faz referência a um livro no qual baseia suas afirmações, apresenta citações acadêmicas, mas em inúmeros momentos remete a situações cotidianas para embasar sua argumentação. A descontração está sempre presente, muito próximo ao que fazem os youtubers do que uma performance tradicional de um apresentador de TV. O diálogo é constante com a audiência, e o posicionamento contra certas situações consideradas injustas, e em defesa da resistência, prepondera.

O mesmo programa já tratou, por exemplo, da situação de Rafael Braga, o único preso em decorrência das manifestações contra a Copa do Mundo em 2014, dos ministros do governo Michel Temer, outro com o tema de “degradações premiadas”, que aborda criticamente as delações premiadas que sustentam a operação Lava Jato, entre outros assuntos. Sobre este das delações, entre brincadeiras, informações sobre a origem do procedimento e do papel da mídia de cunhar o nome, o apresentador avança na reflexão sobre os efeitos desta medida na sociedade. “A delação é pro homem branco, ela cumpre o principal requisito que o sistema penal exige que é a manutenção dos privilégios. A delação taí pra isso, cara, pra reforçar a missão histórica do encarceramento, que é fazer a regulação da miséria”, diz, por volta da metade do segundo minuto do vídeo. O programa, neste dia, tem 20 minutos.

 

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Igor Leone em ação no programa Coisas que você precisa saber

 

Assim, não há meios termos, não há outro lado, não há a tentativa de apresentar fatos isentos de opinião. Pelo contrário, apresenta-se claramente um ponto de vista, a partir de argumentações fundamentadas, mas também do humor e da ironia, com uma linguagem jovem, informal e descontraída, mas nem por isso superficial. Tudo é ilustrado com exemplos do cotidiano, o que torna toda a reflexão bastante factível e visual.

O programa Jogos de Poder também trata de assuntos da atualidade, referentes sobretudo à realidade política brasileira – impeachment, governo Temer, cobertura midiática – e também faz uma abordagem crítica, mas sem o humor presente no Coisas que você precisa saber. Busca fazer uma reflexão didática e crítica, também assumindo certos posicionamentos. Por fim, o Explica aí apresenta como mote a busca por explicar acontecimentos ou fenômenos sociais pouco falados ou omitidos tanto na mídia como na história. Para isso, alia as informações ao humor e a analogias com a cultura pop – como no programa que fez sobre o genocídio armênio e os crimes esquecidos.

Muita coisa boa, interessante e criativa tem sido feita pelos grupos alternativos. O alcance ainda é de certo modo limitado – quando muito, chegam a 20 mil, 30 mil visualizações, às vezes menos –, mas isso não significa que sejam iniciativas mal-sucedidas. Não. A produção e o consumo midiáticos precisam ser compreendidos cada vez mais dentro de um cenário extremamente fragmentado e segmentado, se afastando do consumo de massa. Por outro lado, mais temas estão circulando, mais opiniões estão se formando, mais pensamentos estão sendo estimulados.

Papéis sociais do jornalismo

O jornalismo tem papéis sociais que extrapolam e muito o ato de informar. Quando bem feito, tem o papel de lançar discussões relevantes à sociedade, estimular a reflexividade, nos aproximar de realidades distantes, ampliar o nosso horizonte, nos tornar melhores. Quando digo “melhores”, não significa “superiores”, mas melhores cidadãos e melhores humanos, ao nos aproximar das diferenças, tirando-nos do conforto da nossa vida “normal”, ainda mais maquiada em tempos de redes sociais. Mas, lógico, tudo isso só é possível quando esse jornalismo não nos apresenta o “outro” como meras realidades exóticas para serem consumidas e descartadas, “pra matar a nossa curiosidade”, e sim como outras realidades tão possíveis e tão complexas quanto a nossa, e que por isso mesmo merecem a devida atenção.

Tenho estudado os papeis do jornalismo, até para pensar em que medida o jornalismo alternativo não acaba por subverter ou transformar esses papeis, ao incorporar em suas práticas, muitas vezes, um posicionamento político definido, um lado pré-estabelecido, mas o que me fez pensar neste tema para o post de hoje foi uma série de reportagens feitas pela Folha de S. Paulo intitulada “Um Mundo de Muros”.

Realizado em parceria pela repórter Patrícia Campos Mello e pelo fotógrafo Lalo de Almeida, o trabalho tem como tema mostrar situações em que foram construídos muros, cercas ou quaisquer outras formas de construção usadas para separar populações. Até hoje, foram publicadas cinco reportagens, que devem continuar nas próximas semanas: uma sobre uma cerca que separa a Hungria da Sérvia; outra sobre um muro construído em Cubatão, São Paulo, para “proteger” os usuários da rodovia dos Imigrantes contra os moradores da Vila Esperança; outra mostra a vida em um campo de refugiados no Quênia que está prestes a ser fechado, mas onde ainda vivem mais de 240 mil pessoas; e duas reportagens que mostram a situação da fronteira entre Estados Unidos e o México.

O trabalho se estrutura em textos, acompanhados de um vasto material fotográfico e infográficos, e por minidocumentários com duração média de 10, 11 minutos. Basicamente o texto traz em palavras o que já está contido no documentário, apresentando algumas informações complementares a mais. Contudo, o documentário traz algo que o texto não é capaz de trazer: a emoção da voz e dos rostos das pessoas ouvidas.

Como meu objeto de doutorado, em última instância, é jornalismo alternativo audiovisual (já trouxe um exemplo aqui, e ainda quero voltar a falar mais detidamente sobre o assunto em futuras postagens), vou me deter aqui mais cuidadosamente aos minidocumentários. E farei isso comparando-os com outros trabalhos realizados por grupos alternativos, como o “É proibido falar em Angola” ou o “Morri na Maré“, ambos da Agência Pública, sobre os quais eu já escrevi artigos acadêmicos (aqui e aqui).

À semelhança dos trabalhos que chamo de alternativos, as reportagens da Folha buscam se aproximar do documentário cinematográfico, e não das reportagens televisivas, o que conseguem ao excluir a narração em off, ao privilegiar tomadas mais longas, muitas vezes apenas com o som ambiente, e dar tempo para trabalhar o assunto à exaustão, e não na correria dos 2 minutos que se tornaram padrão nas emissoras de TV. Os entrevistados são enquadrados em primeiro plano, e suas falas acabam por tecer a narrativa, que vai se complementando com a edição de imagens e com a inclusão de alguns dados e mapas, apresentados como infográficos animados. Uma música de fundo instrumental dá o ritmo da maior parte do documentário, que ganha um tom emocional, mas não piegas.

 

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Parte da página inicial do site da Folha que reúne as reportagens de “Um mundo de muros” (Acesso em 07/07/2017)

 

Contudo, diferentemente do material produzido por grupos alternativos, há uma tentativa de realmente se realizar algo com padrão cinematográfico. As imagens são sempre limpas, estabilizadas (não tremem nem aparecem sem foco), repletas de luz e de sentido em cada tomada. Há uso de drones e lentes diferenciadas para apresentar outros pontos de vista. O repórter praticamente não aparece – ao contrário do que muitas vezes acontece em produções alternativas, em que o repórter se torna um personagem relevante, em maior ou menor grau (“É proibido falar em Angola” é um exemplo).

Sobre o conteúdo, na maioria dos vídeos produzidos pela Folha busca-se ouvir “os diferentes lados” da história, quem é contra e quem é a favor do “muro”, além de pessoas que sofrem diretamente com ele, mas, no fim, a impressão que fica é de que as injustiças se sobrepõem a todas as explicações. Em produções alternativas, esse outro lado é recorrentemente deixado de lado, pois é considerado a narrativa hegemônica, que não precisa ser repetida. A intenção é dar voz a quem não tem voz.

Ao apresentar o trabalho da Folha e traçar alguma comparação com produções alternativas, não tenho qualquer intenção de concluir se alguma é melhor ou pior. São modelos diferentes, ainda que ambas sejam práticas jornalísticas (no caso, em audiovisual). Quis trazer o exemplo da Folha para reforçar que o jornalismo, tradicional ou alternativo, tem um imenso potencial não só informativo, mas sobretudo de gerar uma forte reflexão em uma parcela da sociedade sobre as possíveis consequências da cisão social e da reprodução das desigualdades. Uma reflexão que pode resultar em outras ações, sejam elas movidas pela solidariedade, sejam motivadas pela busca de justiça social.

Enfim, sou uma otimista inveterada, eu reconheço, mas ainda consigo enxergar no jornalismo, mesmo no jornalismo tradcional, mas também nas práticas alternativas, papéis importantes a serem exercidos na nossa sociedade. E cabe principalmente aos jornalistas colocá-los em prática.

Democracy Now! e Mediapart.fr

Quando falo que estudo grupos de jornalismo alternativo, muita gente me apresenta bons exemplos mundo afora, e é fantástico encontrar iniciativas que realmente estão dando certo e que são financeiramente sustentáveis. Hoje vou trazer dois exemplos cuja atuação tem se destacado pela relevância de certas matérias e pela credibilidade que têm construído internacionalmente.

O primeiro vem dos Estados Unidos. Democracy Now! é um programa de notícias transmitido tanta web como em alguns canais de TV comunitários dos Estados Unidos, comandado por dois jornalistas, Amy Goodman e Juan Gonzalez. O grupo, fundado em 1996, não tem fins lucrativos e sobrevive apenas com doações de pessoas físicas e de fundações filantrópicas, rejeitando qualquer tipo de publicidade. A proposta é falar de acontecimentos que não sejam de interesse das grandes corporações, mas sim da população, em especial a mais vulnerável. Vai ao ar de segunda à sexta-feira, com uma hora de duração, e conta com entrevistas, notícias e reportagens.

Na prática, o grupo dialoga claramente com valores relacionados à esquerda. Isso fica evidente, por exemplo, ao retratar a situação vivenciada no cenário político brasileiro como um golpe contra a presidente Dilma Rousseff, e não como um impeachment legítimo, como advogam os grupos tradicionais de comunicação. Uma longa entrevista com a ex-presidente cassada foi levada ao ar na semana passada (e pode ser vista aqui).

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O programa também defende, por exemplo, direitos de grupos indígenas sobre terras reivindicadas por empresários para a construção de um oleoduto. Este último caso, que aconteceu em North Dakota, quase levou Amy Goodman à prisão. Ela foi a única jornalista presente durante um protesto da comunidade indígena contra a construção do oleoduto que foi violentamente atacado por seguranças contratados para isolar o local. E, por isso, ela foi acusada de “estimular a desordem” e chegou a ter a prisão decretada, a qual foi suspensa pela grande repercussão negativa que o caso teve internacionalmente. O programa tem até hoje 1,2 milhão de curtidas no Facebook.

Já o Mediapart.fr eu conheci mais recentemente, durante uma palestra sobre notícias e fake news na Universidade Nova de Lisboa. Um de seus colaboradores, o jornalista Philippe Riès, estava lá para falar da experiência. Fundado em 1997, o grupo foi idealizado por jornalistas experientes, provenientes de diferentes meios de comunicação tradicional, com a intenção de ser uma produção digital de qualidade, com investimentos sobretudo em reportagens investigativas. Desde o início, relatou Riès, o grupo decidiu cobrar assinaturas como fonte única de financiamento. E desde então o portal cresce, tanto em receitas como em número de profissionais, chegando hoje a 150 mil assinantes.

Entre as reportagens realizadas, está uma investigação sobre remessas de dinheiro enviadas a Malta, um paraíso fiscal, por autoridades francesas, caso que ganhou o nome de “Malta Files”. A investigação foi possível a partir do vazamento de mais de 150 mil documentos confidenciais de Malta. O grupo também produz dossiês temáticos interpretativos sobre questões relevantes do momento, tais como as eleições francesas, o Brexit e a vitória de Donald Trump.

Como explica Riès, além de uma produção com alta qualidade, o Mediapart foi criado com a intenção de trazer pluralidade ao espaço midiático francês, estimulando um debate crítico não restrito à direita ou à esquerda, mas plural (ele mesmo se diz liberal, e se considera uma minoria entre seus colegas do grupo, formado majoritariamente pela esquerda).

A nova aposta do grupo, segundo Riès, é nos vídeos, o que tem sido feito principalmente com emissões ao vivo, com entrevistas e debates, assim como já faz desde o início o Democracy Now!. Até o dia de hoje, o Mediapart.fr conta com 871 mil curtidas no Facebook.

Modelos internacionais não necessariamente podem ser copiados e colados em outras realidades, pois questões sociais e culturais são em grande medida determinantes para que se compreenda o sucesso ou o fracasso de uma iniciativa, não apenas a qualidade e as intenções que estão entorno do projeto. Mas vale demais conhecer iniciativas bem-sucedidas até para confirmar como o jornalismo segue importante e como pode sobreviver a este furacão das mudanças no ambiente midiático até melhor do que antes. Como diz Clay Shirky, não precisamos dos jornais; precisamos do jornalismo.