O jornalismo vai morrer?

Neste post, faço uma reflexão sobre as mudanças que afetam o jornalismo e que o ameaçam diretamente.

O título traz uma pergunta que vive me rondando, até por ser professora de jornalismo e me preocupar enormemente com os jovens que ingressam no curso e não têm culpa do cenário decadente em que estão entrando. Será que o jornalismo vai morrer? O que será do jornalismo daqui a 10, 20 anos? De repente, eis que me deparo com essa questão, da forma mais direta possível, em uma palestra do professor Silvio Waisbord, no Congresso da ICA, em Washington. E, para o meu desespero, eis que a resposta dele não foi das mais otimistas: “…é, se continuar do jeito que está, o jornalismo tal e qual o conhecemos está com os dias contados”. Será mesmo?

Professor Silvio Waisbord, falando sobre o jornalismo de qualidade, em conferência sobre o jornalismo digital, na Universidade George Washington (maio/2019). Todas as fotos inseridas neste post foram feitas por mim.

Eu mesma, sempre que sou perguntada sobre isso, tento ser otimista e respondo com uma outra pergunta: “você consegue imaginar uma democracia saudável sem jornalismo?”. Respondo isso porque houve mesmo um tempo em que se considerava essencial, para a democracia, a existência de meios de comunicação que atuassem como os mediadores da sociedade, como cães de guarda do interesse público, revelando tudo o que pudesse ser considerado de interesse público para que a população, ciente e consciente, pudesse decidir o seu próprio destino. Terceiro presidente dos Estados Unidos, Thomas Jefferson chegou a afirmar que, se tivesse de optar entre um governo sem jornais, ou jornais sem um governo, não hesitaria em escolher a segunda opção. A frase, dita em 1787, parece ter sido invertida nos dias de hoje: governantes têm feito de tudo para acabar com o jornalismo, desqualificando-o de todas as formas possíveis (os exemplos mais imediatos que vêm à cabeça são Trump e sua versão tupiniquim, Bolsonaro, mas infelizmente não são os únicos).

Frase original de Thomas Jefferson: “Were if left to me to decide whether we should have a government without newspapers or newspapers without a government, I should not hesitate a moment to prefer the latter.” (1787) Local: Newseum, Washington D.C.

Claro que a crise do jornalismo não é causada só pelo desprezo ou pelo ódio de certos governantes. A relação entre os media e o poder nunca foi fácil, já que os jornais se estabeleceram, sobretudo a partir do século XX, como vigilantes do poder, sempre atentos para apontar distorções, o que mais de uma vez levou à queda de governantes. O caso Watergate é um dos exemplos mais lembrados, mas também temos a nossa versão caseira – a queda de Fernando Collor de Melo, em 1992, impulsionada, entre outras coisas, pela entrevista de seu irmão, Pedro Collor, à revista Veja.

A crise do jornalismo decorre de um contexto muito mais amplo, que tem a ver com a mudança no consumo mediático e com a quebra do modelo de financiamento dos meios de comunicação (antes baseado na publicidade) – falei um pouco sobre isso em um outro post. Entre os efeitos, vemos cada vez menos projetos jornalísticos em funcionamento, se restringindo aos “grandes”, com o sumiço dos empreendimentos locais, mas, ao mesmo tempo, assistimos o surgimento de inúmeros atores no ambiente midiático, que passam a difundir conteúdo jornalístico, mesmo que, na maioria das vezes, seja um conteúdo híbrido, misturado com humor e ativismo político.

Com as grandes empresas monopolizando o cenário, mas em uma situação de fraqueza, já que, sem dinheiro, as redações estão ficando menores, e os jornalistas são cada vez mais obrigados a fazer de tudo um pouco, o que os impede de aprofundar o que quer que seja, as grandes reportagens se tornaram mais raras, e passou a proliferar conteúdo declaratório, sem comprovação de nada, como recentemente problematizou a ombudsman da Folha, o que torna o jornalismo um caos cada vez mais descartável. Para Waisbord, ou o jornalismo volta a ter qualidade, retomando seu papel social de apresentar histórias de interesse público, ou o caminho para o fundo do poço não vai ser interrompido.

Mesmo nesse caos, o jornalismo, enquanto instituição e prática, segue com a ladainha de que ter qualidade é se ater ao fato, ser objetivo, descritivo, apresentar os diferentes lados da história, sem envolvimento nem qualquer lance de emoção. A prisão aos referenciais normativos tradicionais não permite que o jornalismo saia do seu pedestal e deixe de agir como “babá” da audiência, mantendo o monopólio do que é notícia, como argumentou outra grande teórica do campo, Barbie Zelizer, em outra palestra da ICA.

Palestra da professora Barbie Zelizer

Claramente, o caminho atual não tem volta. O jornalismo não vai voltar a monopolizar a notícia, nem adianta querer empurrar goela abaixo do público notícias que não lhes interessa. As pessoas estão cada vez mais personalizando seu consumo mediático, o que fazem tanto ao buscar assuntos que lhes interessa, como por interferência dos algoritmos das redes sociais, que, aí sim, “escolhem por nós” o que iremos ver, e isso não parece que irá mudar. Ainda assim, vale seguir o conselho de Waisbord e pensar um pouco em como era esse jornalismo relevante, para refletir sobre os rumos que podem ser tomados para recuperar o campo.

Uma das características desse velho jornalismo era que ele caminhava de mãos dadas com lutas sociais encampadas por minorias. Essa característica é realçada, por exemplo, em diferentes espaços do Newseum, um museu em Washington dedicado às notícias, o principal produto do jornalismo. A luta pelos direitos civis das pessoas negras nos Estados Unidos, a luta das mulheres pelo voto e pela igualdade, a luta em prol da comunidade LGBT, a denúncia contra a guerra e contra a fome. Todas essas lutas ganharam protagonismo pelas mãos do jornalismo, e isso é celebrado no museu, o que nos enche de orgulho. Lá, não é destacada a estratégia dos clickbaites nem a inclinação em apoiar posições do mercado, mesmo contra os mais vulneráveis. Isso que se tornou o jornalismo tradicional nunca foi o ideal do jornalismo. Por isso, vale perguntar: quando o jornalismo se abraça com valores de um liberalismo econômico, definidos pelo mercado, e abandona os valores sociais e da cidadania, passa a servir para quê?

Composição do Newseum que mostra a cobertura de protestos de jovens estudantes negros pelos seus direitos civis

A saída passa, assim, para começo de conversa, em se redefinir o jornalismo, ou melhor, os jornalismos. Porém, passa também por redefinir as estratégias de abordagem, deixando de achar que o público não pensa por si só, não é autônomo. Nesse processo, tenho defendido (e fiquei feliz demais ao saber que tanto Barbie Zelizer, como outro autor muito importante nos estudos do jornalismo, Nick Couldry, partilham o mesmo pensamento) que se deixe de lado de uma vez por todas o ideal normativo da objetividade, o que significa deixar de querer parecer que não há opinião implícita nas notícias, não há viés, e que tudo o que está ali é a mais pura e profunda verdade. O público não acredita mais nesse canto da carochinha, o que é bom, mas ao mesmo tempo aprofunda o caos, já que tudo pode ser alvo de desconfiança (um ambiente mega fértil para a proliferação de desinformação). Por outro lado, ao expor exatamente seu ponto de partida, sua visão de mundo, e deixar de lado a hipocrisia, os meios de comunicação podem recuperar a confiança de parte do público, o que deve ser feito, ainda, com a abertura real dos espaços de interlocução com essa audiência, que quer participar de verdade das decisões editoriais e da produção da notícia, falar e ouvir respostas, e não apenas ocupar um espacinho do “painel do leitor”.

Os meios alternativos podem ter um papel muito importante nesse sentido, mas também com imensos desafios a enfrentar, sobretudo no que diz respeito ao financiamento e à qualificação dos integrantes das equipes, para produzir conteúdos mais contextualizados e interessantes. Conhecer experiências bem-sucedidas nos dá um bom alento, mas ainda está longe de significar que elas salvarão o jornalismo. De todo jeito, prefiro continuar otimista, e acreditar que não há como ter uma democracia desenvolvida sem um bom jornalismo. Nós, os jornalistas e pesquisadores da área, temos o dever de retomar a importância da profissão.

P.S.: Viajei para participar do Congresso da ICA com o apoio da FLAD (Fundação Luso Americana para o Desenvolvimento), de Portugal.

Como os jornais estão se canibalizando: uma carta ao jornal O Povo

A frase de Clay Shirky escrita em 2008 choca ainda hoje: “a sociedade não precisa dos jornais. Nós precisamos é do jornalismo”. O trecho integra um artigo em que o autor norte-americano argumenta que o foco da defesa do jornalismo não deveria recair sobre os jornais impressos, que mais cedo ou mais tarde vão sucumbir pelas mudanças geradas pelo ambiente digital. O que deve ser defendido, na opinião dele, é uma prática jornalística que de fato responda às demandas da sociedade, e não fique presa à sua própria existência, como um fim em si, iludida pela falsa ideia de que seu papel é tão importante para a manutenção da democracia que se confunde com a própria democracia.

Claro que os jornais são importantes, claro que eles foram fundamentais para o desenvolvimento das bases da democracia em todo o mundo democrático, mas isso não apaga os equívocos que o setor dos media cometeu, até mesmo em sentido antidemocrático, para defender seus próprios interesses, em diferentes momentos da história. Um desses equívocos foi, durante muito tempo, a principal estratégia de negócios dos jornais: sufocar iniciativas de pequeno e médio porte, por meio do abuso do poder econômico e da influência política, levando-as a fechar e tornando o campo mediático bem mais concentrado e, ao mesmo tempo, menos plural. Agora, como alegam Broersma e Peters (2013, p. 5), “depois de comerem todas as outras espécies, eles (os jornais) canibalizam a si mesmos”.

Saturno devorando a su hijo (1819-1823), obra de Francisco de Goya, retrata o deus Cronos (Saturno, na mitologia romana), que comia seus filhos por temor de ser destronado por um deles. É uma metáfora sobre o passar do tempo. Aplicada ao jornalismo, a metáfora reflete as ações canibalescas que tem sido aplicadas pelos jornais contra os seus próprios jornalistas em resposta às mudanças no ambiente mediático (para se “defenderem” da perda de $$)

Dia após dia, assistimos essa canibalização nos passaralhos que assombram as redações de tempos em tempos e na exclusão de direitos, negados não só a novos trabalhadores, mas também aos antigos, que passam a se sentir cada vez mais descartáveis e desestimulados a produzir algo de qualidade, uma vez que se valoriza mais o número de cliques e likes do que o potencial transformador de uma boa reportagem. O que os jornais esperam com esse tipo de atitude eu não sei exatamente: equilíbrio financeiro? Lucro? Ganhar mais leitores? Posso falar apenas sobre o que tem sido recorrente: a queda nas vendas e nas receitas só tem se acentuado, e isso se dá principalmente porque os jornais preferem abrir mão do seu principal capital simbólico, o bom jornalismo, conquistado a duras penas pelos seus jornalistas. Se olhassem para o lado (dos leitores), esses mesmos jornais perceberiam que descartar o jornalismo e abraçar os fait divers (ou os chamados clickbaits, em tempos de redes sociais) é exatamente o que os torna socialmente irrelevantes e, por isso, desnecessários.

Falar é fácil, podem alegar alguns gestores de mídia impressa, o difícil é colocar em prática soluções de longo prazo que de fato deem segurança financeira aos negócios. Afinal, sem dinheiro, não há jornalismo. De fato, ainda não surgiram soluções definitivas para essa encrenca, mas algumas experiências mundo afora têm demonstrado que uma das saídas passa pelo bom jornalismo. Falo do que acontece com o The Guardian, o El Diario.es (Espanha), o Buzzfeed, projetos empresariais que têm se mantido sustentáveis ao investir em boas reportagens. Tá, no Brasil as pessoas leem menos, têm um menor nível educacional, têm menos dinheiro, então é claro que os jornais vão sofrer mais para sobreviver, principalmente nas cidades mais pobres, como é o caso de Fortaleza (CE). Sim, tudo isso é verdade, mas exemplos como o da Agência Pública também sinalizam que ainda há procura por um bom jornalismo, que defenda o interesse público, fiscalize os poderosos e coloque em evidência problemas sociais, sempre à frente dos interesses privados.

Mas, aí, entram em jogo as tais consultorias, ligadas ao “mercado”, que chegam nas redações e mandam cortar aqui, ali, esmagando as rotinas de trabalho, inviabilizando o crescimento profissional, e agora, mais recentemente, até mesmo cortando direitos conquistados há anos pelos trabalhadores do setor, como se isso fosse normal e aceitável. Como não têm para onde ir, os trabalhadores muitas vezes aceitam calados, afundando seus problemas financeiros e se tornando mais e mais desiludidos com a profissão. O sonho de ser jornalista, que se materializa quando publicamos a primeira matéria de capa num jornal, se transforma em um pesadelo.

Para completar, os trabalhadores que demonstram a insatisfação, buscando defender seu último naco de dignidade, são acossados, assediados, sendo que alguns são tomados como exemplos (e, por isso, demitidos) para mostrar aos outros que sim, é melhor ficarem calados se ainda quiserem manter seu salário cada vez mais miserável. E, olha a ironia, quem são os algozes dos jornais? Os próprios jornalistas, mas aqueles que conquistaram um carguinho de poder, e que, mesmo sendo empregados, deixaram de se enxergar como trabalhadores (será que se sentem empresários?) e, por isso, não veem nada de errado em aceitar cortes de direitos receitadas por figurões do “mercado” que nada têm a ver com o jornalismo.

Tenho vergonha do que está acontecendo no setor, e sobretudo do que o jornal O Povo está fazendo com os seus jornalistas. Falo do jornal O Povo pois atuei ali durante três anos, tenho muitos amigos, ex-alunos, e tenho assistido atônita a piora nas relações trabalhistas que tem sido aplicada de uns tempos para cá. Atitudes semelhantes estão sendo tomadas também pelo seu “concorrente” (que, nesses momentos, atua como parceiro), Diário do Nordeste, mas vou me referir especificamente sobre O Povo, que é o caso que conheço melhor.

Não é de hoje que as condições não são as ideais, mas havia alguns benefícios que compensavam sacrifícios e serviam como complemento relevante para os salários dos repórteres, como as diárias de viagem, o auxílio creche e as bolsas de estudo para os que têm filhos, o adicional para os repórteres que cobriam polícia. Do nada, cortaram alguns desses direitos e ameaçam tirar os outros, alegando falta de acordo com o sindicato dos jornalistas, mas sem levar em conta que os prejudicados nesse impasse são os jornalistas da casa, aqueles que se desdobram para produzir conteúdo multiplataforma, quem dá vida e sentido à empresa.

Como professora de jornalismo, há algum tempo me incomoda pensar que a universidade sempre formou jornalistas para serem empregados dessas empresas de comunicação. Saímos do curso sem saber fazer outra coisa, acreditando que só há vida para um jornalista dentro de uma redação (seja de jornal, TV, rádio). Estudar os media alternativos e a prática do jornalismo alternativo me fez mudar radicalmente de ideia, e hoje penso que devemos formar jornalistas capazes de atuar principalmente por conta própria, em pequenas iniciativas, ou grandes, mas com autonomia, mobilidade e espírito desbravador, para não ficarem à mercê de empresas que não prezam o jornalismo, apenas a sustentabilidade financeira de seus acionistas. As empresas, claro, seguem sendo importantes, dão empregos e asseguram a renda de muitas pessoas, sendo uma verdadeira tragédia que se degringolem do jeito que está acontecendo. Isso, porém, não lhes dá o direito de massacrar ninguém, o que vai, inclusive, contra os princípios da democracia e, consequentemente, do próprio jornalismo. Como um jornalista vai falar sobre justiça social se ele não pode defender sequer os seus próprios direitos? Que jornal pode falar em democracia quando pratica assédio moral para calar a boca de seus próprios trabalhadores? 

Por essa e por outras, não devemos defender os jornais. Precisamos defender o jornalismo, como uma prática essencial para a sociedade democrática. Como o jornalismo é produzido por jornalistas, devemos repudiar todo tipo de ação que corroa a profissão. Certamente não serão os jornais que irão “salvar” o jornalismo, mas sim seus jornalistas. Por isso, lanço aqui meu repúdio ao jornal O Povo e minha solidariedade a todos os colegas que têm sido perseguidos e humilhados pelos executivos desse jornal.

Referências bibliográficas

Broersma, M., & Peters, C. (2013). Rethinking journalism: the structural transformation of a public good. In C. Peters & M. Broersma (Eds.), Rethinking Journalism – Trust and Participation in a Transformed News Landscap (pp. 1–12). London and New York: Routledge.

Shirky, C. (2008). Newspapers and thinking the unthinkable. Retrieved March 29, 2019, from https://www.edge.org/conversation/clay_shirky-newspapers-and-thinking-the-unthinkable