Quando a forma se sobrepõe ao conteúdo, ou sobre o discurso performativo do jornalismo

Eu realmente não queria que fosse assim, mas o percurso da feitura da minha tese tem me colocado repetidamente uma mesma questão, sobre o que é o jornalismo e como diferenciá-lo de outras práticas. Ao ponto de eu poder afirmar com todas as letras que existe um jornalismo alternativo.

Parece uma pergunta simples, mas quando mergulhamos nela, vai ficando mais e mais complexa. Mas luto para que continue sendo uma questão simples. Sim, o jornalismo é uma profissão, é um campo profissional, é uma instituição, é uma identidade, é uma ideologia. E é uma prática. Associada à intenção de informar, o que significa relatar acontecimentos relacionados a uma realidade verificável, e que potencialmente merece ter o interesse público.

Mas o jornalismo é mais do que isso. Conseguimos reconhecer uma notícia, um telejornal, uma entrevista, assim que nos deparamos com uma. E valorizamos o “bom jornalismo”, contra o “sensacionalismo, o mau jornalismo”, chegando a descartar algumas produções, e adorar outras. Fazemos isso de um jeito intuitivo, talvez sem refletir tanto, mas fazemos. E nos decepcionamos quando aquele jornalista que amamos dá uma bola fora, erra, dá uma “barrigada”.

Pesquisador importantíssimo da Análise do Discurso, Patrick Charaudeau publicou há alguns anos um livro intitulado o Discurso das Mídias, em que descreve as estratégias discursivas aplicadas pelos meios de comunicação, com seus mais diversos gêneros e formatos. No caso do discurso jornalístico, este emprega estratégias de validação para criar efeitos de verdade – já que é impossível chegar à verdade pura, uma vez que os fatos são apenas relatáveis, jamais reproduzíveis. Para alcançar o tal efeito de verdade, o jornalismo criou regras, valores e formatos que induzem a uma produção artificialmente impessoalizada, que sempre remete a declarações de outrem (por discurso direto ou indireto) para apresentar os fatos, cria critérios de seleção e hierarquização das notícias, inclui diferentes pontos de vista sobre o relato (pelo menos os dois lados), sem deixar claro o seu posicionamento, afinal precisa ser imparcial e equilibrado. A tal objetividade jornalística, que já tratei por aqui em outro post.

Todas essas regras acabam por ser inseridas em um contrato de comunicação, como definido por Charaudeau, em que tanto o produtor como o receptor (leitor/espectador/usuário) estabelecem um pacto pautado em certos critérios do que se deve esperar do comportamento de um e do outro, com relação ao conteúdo difundido e o consumo. Tudo isso de modo implícito. Assim, se um jornal diz que faz um jornalismo objetivo, imparcial, neutro, o receptor também vai esperar isso, e o vai cobrar desse posicionamento. O que, em tese, faria com que qualquer mudança na postura de um lado ou do outro se torne muito difícil, já que poderia levar ao rompimento desse contrato.

Com o aprofundamento da crise do jornalismo (com jornais que fecham, redução dos empregos nas redações, planos de negócios cada vez mais incertos), claro que toda essa história de contrato também pode ser colocada em xeque e tem muita gente tentando experimentar, criando hibridizações que geram conteúdos bem diversificados. Podemos incluir entre essas hibridizações tanto os produtos de infoentretenimento (que unem jornalismo com o humor, por exemplo), como os de jornalismo de dados (que aproximam jornalismo com o hacker-ativismo), e também o jornalismo alternativo (que alia, em maior ou menor grau, a prática jornalística com o ativismo social).

A “autenticidade” do jornalismo, contudo, continua a ser cobrada por muitos leitores, que muitas vezes rejeitam um jornalismo engajado em causas sociais, que não quer ser imparcial nem neutro, e que defende abertamente um determinado posicionamento. E isso se dá por um motivo muito claro: porque isso significa uma quebra do contrato de comunicação, uma quebra da performance hegemônica do jornalismo. Tomo aqui o conceito de performance a partir do que conceitua Marcel Broersma, que tem desenvolvido uma produção sobre o jornalismo em que entende que a face do jornalismo não é moldada tão somente pelo conteúdo que dissemina, como um discurso descritivo, mas sim por se efetivar como um discurso performativo, desenhado para persuadir os leitores de que o que diz é a descrição do real, o que faz ao transformar uma interpretação em verdade. E as pessoas querem que isso se mantenha.

No meio disso tudo, vemos a multiplicação de um fenômeno que sempre existiu, mas que ganhou um nome popular: fake news (sobre o que já falamos por aqui também). Forjadas em linguagem jornalística, difundidas em sites similares aos jornalísticos, estruturadas a partir de estratégias que remetem a uma tentativa de validação, com uso de provas de que aquele acontecimento realmente existiu, como fotos, declarações, documentos. Ainda que sejam todos falsos, não importa o conteúdo. A forma, a performance, é idêntica à do jornalismo tradicional, e isso é o que vale.

Broersma considera que, ainda que os críticos da objetividade jornalística tenham razão, e esse seja um conjunto de valores jamais alcançável na prática, o jornalismo não poderia simplesmente admitir suas limitações, assumir com transparência que não apresenta a verdade absoluta, mas sim versões dessa verdade, e sair incólume. A performance, ou seja, a forma colocada em prática para que acreditemos que de uma boa prática jornalística pode e é alcançada por meios de comunicação comprometidos, sérios e profissionais, é possivelmente a principal chave de sobrevivência do jornalismo, ainda nos dias de hoje, segundo Broersma. Contudo, o autor não colocou em perspectiva se essa também não seria a mesma chave usada pelos que disseminam as tais fake news, que, travestidos de bom jornalismo, se apresentam os únicos que dizem a verdade, contra toda uma mídia “vendida” e dependente dos poderosos.

O mesmo Broersma admite, entretanto, como única saída que parece estar sendo viabilizada, a maior difusão do que chama de jornalismo partidarizado (e eu chamo de jornalismo alternativo), um jornalismo que admite ter um lado, que não esconde sua parcialidade e que, com isso, evidencia que traz à tona uma determinada versão do fato relatado (que considera “o” lado verdadeiro, claro, mas uma versão entre outras possíveis). Ainda assim, o autor enxerga limitações nessa prática, pela resistência de um público que por um lado é cada vez mais fragmentado, mas que também segue preso a certas crenças. Concordo com essa visão, o jornalismo alternativo não vai ser o salvador de tudo, nem “regenerar o jornalismo”, como também já foi cogitado. Mas considero que assumir, com transparência, limitações e pontos de vista no jornalismo de modo geral pode ser sim um caminho promissor para resguardar a prática das iniciativas mal-intencionadas. Assumir posicionamentos, mas mantendo o compromisso em expor acontecimentos pautados na realidade possível de ser verificada, confirmada. Isso sim pode se tornar o maior pilar do jornalismo.

Referências que usei no texto:

Broersma, Marcel (2010). The unbearable limitations of journalism. On press critique and journalism’s claim to truth. The International Communication Gazette, v. 72 (1), pp. 21-33.

Charaudeau, Patrick (2006). São Paulo: Editora Contexto.

Autor: Kamila Fernandes

Jornalista de formação e de paixão, me enveredei pelo universo acadêmico e agora busco questionar os parâmetros mais básicos do próprio jornalismo, numa busca por repensar e até melhorar esta prática. Desde outubro de 2015, faço doutorado em Estudos de Comunicação no Instituto de Ciências Sociais, da Universidade do Minho, em Portugal, tendo como objeto de estudo iniciativas de jornalismo alternativo audiovisual. Minha ideia é compreender que sentidos são produzidos por este tipo de produção que reúne informação e engajamento político.

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