Essa tal objetividade

Uma das características que levei em conta ao delimitar, para minha pesquisa do doutorado, grupos que pudessem ser considerados como produções do jornalismo alternativo é se eles se referem a fatos verificáveis. Tal premissa parece óbvia, mas na verdade é repleta de armadilhas, já que captar a tal verdade em si é algo bastante subjetivo. Isso porque não é possível replicar um fato que aconteceu na realidade ontológica, onde ele existiu, apenas relatá-lo, o que se dá numa perspectiva epistemológica, do que se sabe, o que já o modifica. Assim, o jornalismo pode apenas apresentar versões (Sponholz, 2009).

E tais versões não são absolutas nem inquestionáveis. Um fato efetivado na vida real pode ter uma série de implicações, variações, a depender sobretudo da posição do sujeito envolvido neste fato. Um exemplo bem cotidiano: acontece uma manifestação popular contra o governo. Para um manifestante, tal protesto deve ser relatado de uma determinada forma, para um policial, de outra, para um representante do governo, de outra ainda, e isso sem contar em cidadãos que moram perto da região do protesto, que vão ter outra visão daquele acontecimento, entre tantos e tantos sujeitos que potencialmente podem ter alguma participação, seja em que sentido for, na citada manifestação.

Espera-se, do jornalismo, um olhar “objetivo” para captar a “verdade” do fato, um olhar que consiga colocar todas essas diferentes visões sobre o fato em perspectiva. Mas como isso é possível? Estabeleceu-se uma série de normas e valores a serem seguidos, sob o manto da objetividade jornalística, no sentido de alcançar a tal verdade do fato no relato, o que passa por livrar a informação de qualquer juízo de valor ou opinião, trazer falas de entrevistados entre aspas, para manter o que eles pensam de modo intacto, e hierarquizar a narrativa de tal modo a responder questões tidas como imprescindíveis, ao mesmo tempo em que se define uma hierarquia para contar o que aconteceu.

O problema é a impraticabilidade desta promessa de objetividade. Não é possível alcançá-la, simplesmente porque não existe um discurso objetivo, puramente descritivo e neutro, isento de opinião ou viés em sua essência. E o jornalismo não é exceção. Mais um exemplo tirado de manifestações. Uma matéria de TV sobre a greve geral que aconteceu no Brasil no dia 28 de abril deste ano era repleta de números, descrevia quantos manifestantes, onde estavam, o que fizeram, a ação policial, dava voz aos sindicalistas, a populares e a autoridades. Usou simplesmente tudo o que manda o manual de redação sobre a objetividade. Mas claramente a matéria tinha um viés bem definido, contrário à manifestação (e uma das estratégias para desqualificá-la foi justamente os números e a fala de populares). A opinião está sempre ali, mesmo quando se tenta apagá-la.

Mas como resolver isso? Como confiar numa produção que se diz jornalística, seja de que origem for? Em tempos dessa explosão de fake news, cada vez mais influentes e de fácil difusão nas redes sociais digitais, este é um problema de importante. E não restrito ao Brasil. Como trouxe matéria da Agência Pública sobre a situação na Venezuela:

“Ele (Luis Vicente Leon, presidente do Instituto Datanálisis, responsável por fazer pesquisas no país) aponta também outro entrave para o país chegar a uma solução, esse mais profundo e intangível. ‘Na Venezuela há escassez de leite, café, arroz, mas o mais escasso é a verdade. E, mais ainda, a objetividade. Aqui é um país onde nunca se sabe o que é verdade, nem nos meios de comunicação, nem nos discursos, nem nos debates, nem nas entrevistas’, diz. ‘O tema da verdade foi perdido completamente como um valor na Venezuela. E, claro, não somente no governo, mas também na oposição. Há uma guerra de pinóquios, onde todo mundo mente e onde você nunca sabe o que é verdade e o que é mentira. E, se você perde a verdade, simplesmente não é capaz de separar o ruído dos sinais. Então, tomar posições ou decisões se converte em um elemento muito difícil’, avalia.”

Sim, o jornalismo não pode prescindir da verdade, ainda que ela seja subjetiva. Não dá para ser uma verdade única, objetiva, palpável como uma pedra, mas pode ser clara, ao se trazer à tona qual o ponto de vista do grupo de comunicação, de que posição este jornalismo fala. Neste sentido, a transparência parece ser um valor novo e bastante relevante para a prática jornalística, uma prática que sempre buscou “desvendar o que é encoberto pelos interesses do poder”, mas que se acostumou a omitir, ou no mínimo deixar bem opacas, suas relações comerciais, políticas, ideológicas. Quando tudo vêm à tona, sabemos de onde vem a informação e temos como problematizá-la, até confrontá-la com conteúdos produzidos por grupos que tenham interesses contrastantes.

Com transparência, é possível ter até mesmo um jornalismo politicamente engajado com certas causas sociais, como acontece com inúmeros grupos de jornalismo alternativo que estudo (não todos, vale salientar). Porque os objetivos do jornalismo, que são produzir informação e opinião, estão lá, acompanhados pelo uso de técnicas jornalísticas de apuração e checagem de informação, mas com interesses e um ponto de vista previamente declarados. Não que o resultado seja um jornalismo “perfeito” ou mesmo “ideal”, mas muita produção de qualidade tem sido originada deste tipo de prática, até melhor do que têm feito muitos jornalões tradicionais.

O que demonstra que, no fim, é possível sim pensar num jornalismo fora da caixa limitadora da objetividade, sem perder de vista o compromisso em se fincar em relatos verificáveis, relacionados a fatos sobre os quais pressupõe-se serem verdadeiros, buscando-se chegar o mais perto possível deles a partir de pressupostos, checagens e atualizações.

 

Autor: Kamila Fernandes

Jornalista de formação e de paixão, me enveredei pelo universo acadêmico e agora busco questionar os parâmetros mais básicos do próprio jornalismo, numa busca por repensar e até melhorar esta prática. Desde outubro de 2015, faço doutorado em Estudos de Comunicação no Instituto de Ciências Sociais, da Universidade do Minho, em Portugal, tendo como objeto de estudo iniciativas de jornalismo alternativo audiovisual. Minha ideia é compreender que sentidos são produzidos por este tipo de produção que reúne informação e engajamento político.