Essa tal objetividade jornalística (2): tabu a ser desconstruído

Texto sobre um dos maiores tabus do jornalismo, a objetividade jornalística.

Das coisas que descobri ao longo do doutorado: é necessário ter sangue frio para criticar os cânons do jornalismo, porque, ao fazer isso, saiba que virá artilharia pesada contra si por parte de pesquisadores da área. Todos reclamam da profissão, das empresas, fazem críticas a matérias, mas no fim das contas, querem que tudo se mantenha quase do mesmo jeito, com mudanças apenas dos “donos” dos meios.

Um desses cânons intocáveis que ganhou proeminência nas últimas semanas é o da imparcialidade. Bastou o The Intercept Brasil lançar uma série de reportagens sem ouvir o “outro lado” (a série Vaza Jato) e usando termos mais diretos para descrever o que estava divulgando, como algo criminoso, para que vozes analíticas, em coro com uma parte do senso comum, passassem a apontar distorções do bom jornalismo, por ser militante, ativista, ou seja, não isento e, portanto, não profissional. Há também muitos defensores da postura do grupo jornalístico (entre os que me incluo), mas vejo que muitos que elogiam a publicação não são exatamente da área do jornalismo: são da antropologia, das ciências políticas, da sociologia, da filosofia. Sem ser acadêmicos, há também jornalistas que defendem a postura do site, mas gente que já assumiu, cotidianamente, uma posição mais opinativa, e até por isso combate a hipocrisia.

Mas acho que o conceito mais intocável nesse campo, ainda hoje, é o da objetividade jornalística. Eu já sabia que fazer a crítica a esse ideal seria como mexer em um vespeiro, mas mesmo assim resolvi arriscar, e lá está ele na minha tese (ainda não defendida e, por isso, não publicada). Não é o conceito central, mas não deixa de ser um dos mais relevantes, pois é parte do coração do jornalismo profissional tal qual o conhecemos. Essa semana, ao apresentar parte da minha pesquisa no Seminário Permanente de Comunicação e Diversidade do CECS (Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade), da Universidade do Minho, onde realizo o doutorado, meu posicionamento foi alvo de uma saraivada de críticas da professora Sylvia Moretzsohn, de quem sou fã e respeito enormemente, e na ocasião não consegui responder adequadamente (cheguei à conclusão de que até na minha tese isso não está bem esclarecido e vou mexer no texto para me expressar melhor). Por isso, aqui vai mais uma reflexão sobre o tema.

Eu e a professora Sylvia Moretzsohn durante o seminário. Foto do Fábio Marques

O jornalismo tomou a forma que conhecemos no início do século XX, e no Brasil isso aconteceu um pouco mais tardiamente, com a separação clara entre informação e opinião, e com a aplicação de certos procedimentos no tratamento da notícia, tendo como objetivo maior apresentar o fato o mais próximo da realidade.

A ideia é a seguinte: há um acontecimento, presenciado por inúmeras testemunhas, que o veem a uma certa distância e, por isso, cada um tem um ponto de vista diferente. O jornalismo, ao utilizar certas ferramentas (como entrevistas, pesquisa documental e uso de imagens), a partir de uma certa postura (isento, imparcial e neutro, interessado unicamente em buscar a verdade), age como se aplicasse uma lente de aumento em relação a esse acontecimento, que o aproxima do fato, mesmo que não estivesse presente no momento em que o fato se deu. Essa lente, que condensa diferentes pontos de vista, imagens e documentos, tem como pretensão maior não reproduzir o acontecimento, mas apresentar a versão mais verdadeira possível do fato. Essa lente é o que passou a ser chamado de objetividade jornalística.

O problema, já notado nos anos 1970 por pesquisadores como Stuart Hall, é que essa lente tem filtros que determinam o que será visto (e mostrado) e o que não será. E não apenas: essa lente determina como o acontecimento será visto e mostrado. Entre esses filtros estão valores notícia que hierarquizam os sujeitos, as instituições e as relações sociais, e que estabelecem o que é mais importante e o que é menos importante. Mais do que isso, entre esses filtros se escondem ideologias, afinal o texto jornalístico é um tipo de discurso, e como todo discurso está embebido por traços ideológicos, mesmo quando não se percebe claramente isso.

Um exemplo bem recente (e até explícito para muita gente) é a cobertura da reforma da previdência (entre os media tradicionais brasileiros). A abordagem de todos os jornais parte do pressuposto de que a reforma é necessária, dada a situação financeira do governo, de déficit crescente. Nesse sentido, são aplicados todos os procedimentos padrão estabelecidos pela objetividade: levantamento de dados, escuta de especialistas, declarações de governistas e da oposição. Só que não se problematiza o que deveria ser o mais óbvio: o ponto de vista de que a máquina pública não pode ter déficit, tem de ser superavitária, e que diante das perdas de receitas é necessário fazer “cortes” para reequilibrar as contas públicas. Esse ponto de vista é pautado na ideologia capitalista neoliberal, que preconiza o Estado mínimo, e certamente não é o único pensamento possível sobre a atuação do Estado na sociedade.

Como esse tipo de cobertura poderia ser diferente? Por exemplo, ouvindo pessoas comuns. Gente cuja família depende da aposentadoria para viver. Donos de comércios locais que contam como o ingresso das aposentadorias é vital para o seu sustento. Outra forma é sair do lugar comum, e das fontes viciadas que são sempre acionadas, e buscar especialistas que defendem outras posições. Dar realmente espaço à oposição e problematizar o que argumentam, não apenas lançando entre aspas como um “outro lado”.

Só que, na prática, o modelo normativo da objetividade fez com que a rotina de trabalho passasse a reproduzir certas práticas, que passaram a ser cultivadas como se fossem as únicas certas e possíveis. A precarização do trabalho do jornalista, intensificada com a crise sem precedentes do setor, torna essa mecanização ainda mais grave, já que impede que os jornalistas na ativa tenham tempo de pensar. Reproduzir, assim, é bem mais fácil.

Mesmo assim, a objetividade está lá, santa e intocável. E é acionada por todos os lados, tanto por quem age com a melhor da boa-fé, tentando mesmo produzir um jornalismo de qualidade, como por aqueles que querem plantar mentiras, mas sob o manto da técnica e das boas práticas. Sim, é possível simular a objetividade jornalística, porque no fim das contas o discurso jornalístico é performativo (já falei disso antes), por ter de se materializar discursivamente, e o que importa é muito mais o que ele parece ser. Parecendo direto, isento, excluindo todo tipo de adjetivo e até advérbios, apresentando declarações, documentos e imagens, tcharan: “eis um bom trabalho jornalístico”, mesmo não sendo. Muitas das fake news se utilizam desse expediente para se disseminar e certamente é por isso que são tão facilmente difundidas, afinal, se parecem com notícias, são notícias, e são verdade.

Por essas e outras, considerei desde o início da minha pesquisa que eu deveria mexer sim nesse vespeiro e minimamente problematizar esse ideal, para até, quem sabe, negá-lo. Fazer a crítica, porém, não significa pregar negação da realidade, nem muito menos negar a busca pela verdade, como meta maior do jornalismo. Não, caso contrário não é mais jornalismo. Fazer a crítica e até propor que se pense um jornalismo fora da caixa da objetividade é em grande medida deixar claro que essa performance da objetividade (nem que seja decorrente da maior precisão possível) não é suficiente para retomar a confiança que jornalismo perdeu nos últimos anos. Fazer a crítica é entender que mais do que a preocupação em simplesmente apresentar um relato frio e descritivo, baseado em declarações e números, está na hora do jornalismo se expor e mostrar seus procedimentos, suas decisões e motivações. Fazer a crítica é ressaltar a urgência em dar transparência ao relato jornalístico, ainda que isso aparentemente o enfraqueça em um primeiro momento (afinal, a verdade relatada poderá ser refutada a partir da exposição dos procedimentos adotados, que poderão ser questionados). Como já está acontecendo, certamente essa transparência, com o tempo, irá fortalecer os jornalistas que assumirem posicionamentos claros, sem deixar de produzir um jornalismo de excelência, que não só informe, como também emocione, gere empatia e adesão a causas sociais. Afinal, querendo ou não, os jornalistas e outros atores que compõem o espaço público mediático são atores políticos, querendo ou não, que mesmo sob o manto da objetividade interferem enormemente nos rumos que tomam as relações sociais e nas tendências que mantêm ou transformam as estruturas sociais. Assumir esse papel político (não confundir com partidário) é assumir um protagonismo no debate público que pode culminar com a retomada da relevância do jornalismo. Negá-lo é abrir espaço definitivamente para que robôs façam o serviço (que, ainda assim, continuará tendo um viés, afinal a programação de algoritmos é feita por humanos e suas visões de mundo).