Quem disse que jornalista não pode ser ativista?

A pergunta que deixei no título não passa de uma pergunta retórica, já contém nela o meu juízo moral, com minha resposta. Mas acredito que valha, de todo jeito, argumentar um pouco sobre esse assunto, que afinal está na base do meu projeto de doutorado.

Aprendemos na faculdade de jornalismo que objetivo final de um bom profissional é retratar o mais fielmente possível a verdade. E, para isso, ele deve ser isento, neutro, e ficar distante o suficiente o fato e dos envolvidos para não contaminar a reportagem. Pensamento que se alinha fortemente ao paradigma positivista, que moldou nossas ciências sociais desde o seu nascedouro, e que ainda hoje (por incrível que pareça) é hegemônico não só no campo acadêmico, mas no mercado.

Não é à toa que os números são tão valorizados. Quantas e quantas vezes, depois de entregar uma matéria que eu achava que estava bem apurada, com vários relatos interessantes, algum dos meus editores me ligava questionando: e os números? Isso aqui não dá pra publicar. Tem que ter números. E lá ia eu atrás dos benditos números, que no fim se transformariam no lide e no título da matéria.

Números são a materialização discursiva da verdade jornalística. Não as pessoas. Não suas vozes. Não o que pensam. E isso é herança desse pensamento embasado na objetividade, na ideia de que é possível se transpor o fato discursivamente. Nem mesmo a ascensão de paradigmas mais interpretativos foi capaz de derrubar essa visão.

Por causa disso, o jornalista ideal precisa ser frio, calculista, crítico de tudo e de todos e totalmente despido de paixões. Não pode se envolver nem apoiar nada. Tudo deve ser visto com desconfiança. Foi isso o que eu aprendi, foi isso o que eu coloquei em prática durante boa parte da minha vida profissional.

Mas e quando vemos uma imensa situação de injustiça? Quando temos a chance de entrevistar um skinhead que agrediu uma pessoa na rua, gratuitamente, apenas porque essa pessoa era negra e gay, o que devemos fazer? Agir friamente, só deixando essa pessoa falar abertamente, para dar o lado dela? E com a pessoa agredida, temos que ser, por outro lado, desconfiado o suficiente para colocar a palavra dela em dúvida, já que “outro lado” negou ter culpa?

O descolamento que me tirou das redações e me trouxe pra academia tem me levado a ler um bocado sobre a prática jornalística e a refletir bastante sobre tudo o que envolve a nossa profissão. E entre as coisas que mais me impressionaram nos últimos tempos foi um livro que aborda a aproximação entre o jornalismo e o ativismo, de uma pesquisadora norte-americana chamada Adrienne Russell. Journalism as Activism é um livro recente, lançado em 2016, em que a autora reflete tanto teoricamente como empiricamente sobre a prática jornalística contemporânea, dando atenção especial a coberturas de manifestações sociais ao redor mundo.

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No estudo, ela entrevistou muita gente envolvida com comunicação e jornalismo, e deu ênfase a quatro profissionais que têm se destacado pelo trabalho jornalístico engajado, ativista. Entre esses profissionais está o jornalista Glenn Greenwald, que trouxe à tona os documentos vazados por Edward Snowden, pelo The Guardian, e hoje atua em seu próprio meio alternativo internacional, o The Intercept. No livro, Glenn é claro ao dizer que o problema não é ser acusado de ser um ativista. Muito pelo contrário. Para ele, todo bom jornalista é um ativista, por não aceitar situações de injustiça e por querer transformar o mundo. Para Glenn, o problema é a desonestidade, inclusive quando se fala que não se tem lado. Todo mundo tem um lado, e quem esconde o lado que apoia, normalmente é porque está do lado do status quo.

Uma jornalista do The Intercept Brasil, Cecília Oliveira, falou algo parecido há poucos meses durante um debate promovido pela Agência Pública sobre os rumos do jornalismo. É possível ver o vídeo aqui.

O livro de Russell traz outros exemplos. Como o do jornalista especializado em meio ambiente Bill McKibben, um dos precursores na defesa de que a terra passa por um aquecimento global e de que é necessário acionar políticas emergenciais em todo o globo para conter a emissão de gases do efeito estufa. Para ele, ao simplesmente querer respeitar a tal da “objetividade” e dar espaço para vozes (minoritárias e normalmente sem respaldo dos pares) que negam o processo de aquecimento é gerar desinformação, o que favorece só o mercado (o tal sistema), prejudicando fortemente a população mundial, mas especialmente os mais pobres, sempre os mais vulneráveis.

Esses exemplos são importantes porque é fácil demais nos agarrarmos a normas, a regras, tidas como inquestionáveis, para justificar nossa omissão. Que, no fim, funciona bem para manter tudo como está, os poderes com mais poder, e os pobres, na mira da morte e das agressões e da falta de acesso a uma vida digna. É mais fácil, afinal, está tudo no manual.

Mas o jornalismo, se virar a página desses manuais e se der conta da sua responsabilidade social, de criar representações, pautar discussões públicas e ensejar o empoderamento dos cidadãos, pode cumprir muito melhor o seu papel, e voltar a ser necessário e valorizado.  Afinal, não foram só as redes sociais que tiraram esse papel do jornalismo. Foram as próprias empresas de comunicação e as convenções normativas engessadas que fizeram com que o jornalismo chegasse ao ponto de ser descartável, afinal só fala o que os poderosos querem que seja dito. E jornalistas que agem diferente, que desafiam o poder, e que botam o dedo na ferida, são desqualificados, afinal “não são jornalistas, são ativistas”.

Pois bem, que sejamos ativistas. Ativistas do direito à informação relevante, crítica e de qualidade. Da informação que potencialize o poder popular, e não se submeta a meia dúzia de poderosos que não fazem outra coisa a não ser procurar meios de se manter onde estão, tirando o máximo que podem da população (inclusive dinheiro, óbvio). Ativistas do jornalismo e da justiça social, do que é certo. Só ficar reproduzindo falas dos outros, como faz um gravador, sem questionar, sem incomodar, sem pensar nas consequências desse ato, sinceramente, isso pra mim está longe de ser jornalismo.

Autor: Kamila Fernandes

Jornalista de formação e de paixão, me enveredei pelo universo acadêmico e agora busco questionar os parâmetros mais básicos do próprio jornalismo, numa busca por repensar e até melhorar esta prática. Desde outubro de 2015, faço doutorado em Estudos de Comunicação no Instituto de Ciências Sociais, da Universidade do Minho, em Portugal, tendo como objeto de estudo iniciativas de jornalismo alternativo audiovisual. Minha ideia é compreender que sentidos são produzidos por este tipo de produção que reúne informação e engajamento político.

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