Carta-protesto em homenagem ao dia do jornalista

Há alguns anos, o jornalismo não era tão valorizado. As audiências das emissoras de TV, abertas e pagas, dos sites dos jornais e das rádios há muito tempo não eram tão robustas. As pessoas voltaram a consumir jornalismo porque querem ter acesso a informações credíveis, não se contentando apenas com o que disse o primo da amiga da vizinha.
Essa revalorização, porém, não significa que os ataques ao jornalismo cessaram. Os ataques persistem, partindo inclusive de onde menos se espera, das redações dos jornais.
Um exemplo vem, mais uma vez, da redação do jornal O Povo (Fortaleza-CE), que, ainda na primeira semana do distanciamento social proposto para restringir a disseminação do coronavírus, na segunda metade de março de 2020, demitiu muitos jornalistas. Alguns, inclusive, com décadas de casa, prêmios e imensos serviços prestados à sociedade.
Neste 7 de abril, temos que aplaudir os profissionais que seguem nas ruas, arriscando a sua própria vida e a dos familiares, para levar informação aos cidadãos. Devemos aplaudir aqueles que continuam fazendo plantão na frente do Palácio do Alvorada, ao mesmo tempo em que lamentamos quando estes são categoricamente ignorados ou alvos de xingamentos, como se fizessem parte de uma esquete de humor de quinta categoria encenada por quem ocupa a Presidência da República. Devemos aplaudir aqueles que, de casa, em meio aos cuidados com os filhos, com os pais e outros familiares, e ainda com toda a preocupação em relação ao que acontece no resto do mundo, seguem à busca de informações, muitas vezes sem qualquer apoio das empresas de comunicação para pagar energia, internet, ligações telefônicas, e mesmo assim mantendo o compromisso máximo com a apuração rigorosa, com a ética e com o interesse público.
Este é um dia para ser, sim, celebrado, mas também para protestarmos e para refletirmos sobre formas mais sustentáveis e menos mercadológicas de garantir a produção jornalística de forma perene e consistente. Essa reflexão já foi iniciada por instituições como o Intervozes e por pesquisadores da área de jornalismo, mas precisa ser definitivamente abraçada pela base, com o fortalecimento dos sindicatos que envolvem a categoria. Nas universidades, também devemos fazer mais, ao não só focar na formação de jornalistas para as redações, mas para pensar na produção e gestão da comunicação de uma maneira bem mais ampla, quiçá focando na comunicação pública, que não significa comunicação de um governo, mas sim de toda a sociedade, ao ser regulada pelos cidadãos.
Neste dia do jornalista, aplaudamos a essência dessa prática, que é trazer à tona relatos relacionados a acontecimentos de interesse social que são fundamentais para podemos refletir sobre os rumos das nossas vidas, sobre o que queremos para o futuro, sobre o que deve ser feito coletivamente. Que o jornalismo voltado para o interesse privado, focado no mercado, nos altos e baixos das bolsas, perca espaço e seja cada vez mais uma exceção. Que esta pandemia seja uma boa oportunidade para que se evidencie o quanto a sociedade precisa e gosta do jornalismo voltado ao interesse público, preocupado com as pessoas que age em direção à busca pela justiça social, não pelos ganhos financeiros de meia dúzia de ricaços. Precisamos do jornalismo e vamos lutar por ele.

Nem à direita, nem à esquerda: a agenda da favela

Mesmo com toda a promessa da internet de democratizar o acesso à comunicação, o cenário midiático não é dos mais animadores, com uma forte e contínua concentração dos meios de comunicação nas mãos de poucos conglomerados, que criam estruturas que aparentam estimular a liberdade de expressão, mas que na prática exercem um intenso controle de tudo o que é publicado. Sim, mesmo que aparentemente tenha sido iniciado um movimento em que as audiências passaram a se dispersar em diferentes canais, seguindo a tendência de segmentação dos públicos, a imensa maioria das pessoas continua concentrada nas mãos da Globo, da Record, do SBT e companhia limitada – mundo afora, isso não é lá muito diferente.

Mas uma coisa não dá para negar: uma pequena revolução acontece, aos pouquinhos, em diferentes espaços sociais, especialmente nas periferias, por meio de iniciativas de comunicação alternativa comunitária.

Um dos “laboratórios” dessa revolução tem sido as favelas do Rio de Janeiro, onde a violência é mostrada pela mídia tradicional apenas em números e pela voz das autoridades policiais. Mortes causadas pela repressão policial são narradas como resultado de confrontos com troca de tiros, mesmo quando não há provas dos tiros trocados. Pessoas mortas viram suspeitos e normalmente suas histórias são apagadas. O morador é silenciado, só existindo quando há muito choro, comoção, e suas lágrimas motivam cliques.

Os grupos de mídia alternativa de favela nascem da constatação dessas distorções, mas não só por isso: pela necessidade de produzir informação relevante para os moradores da favela, sobre a favela, que não se restrinja a aspetos negativos do cotidiano, mas também tratem de serviços, deem espaço para que pessoas relevantes do local sejam conhecidas e reconhecidas, e mesmo situações que já são noticiadas pela mídia tradicional sejam divulgadas com maior precisão e na dimensão correta.

A experiência de coletivos de comunicação alternativa foi narrada por três expoentes do mídia-ativismo de favela do Rio de Janeiro, Raull Santiago, do Coletivo Papo Reto, Rene Silva, do Voz das Comunidades, e Buba Aguiar, do coletivo Fala Akari (inclusive eu tenho falado sobre o trabalho do Papo Reto há algum tempo, como neste post). Os três estiveram presentes a uma mesa redonda sobre as narrativas da favela, realizada no Centro Cultural Belchior, na Praia de Iracema, no dia 19 de novembro de 2019. O evento, que contou ainda com Kdu dos Anjos (Centro Cultural Lá da Favelinha, MG), Talmon Lima (La Casa du’z Vetim, CE) e Gab Savir (GhettoRoots, CE), além de Preto Zezé (CUFA), não teve a cobertura de nenhum meio de comunicação – o que comprova o quanto falar sobre favela segue sendo um assunto marginalizado e invisibilizado pela mídia convencional.

Uma selfie minha com Rene, Raull e Buba

A conversa foi longa, abrangendo o diagnóstico da situação de exclusão das periferias pelo país afora, mas sobretudo apresentando estratégias de empoderamento e fortalecimento da organização de base das comunidades, passando inclusive por questões relacionadas à política-partidária.

Em resumo, os palestrantes reforçaram o quanto a favela representa uma enorme potência, de capital social e econômico, sendo fonte de projetos que podem gerar muita renda a partir da cultura que naturalmente já que é difundida pelos moradores locais; mas também o quanto essa potência é boicotada pela ausência de políticas públicas e pelo foco do Estado em insistir na guerra às drogas, que na verdade se converte em uma política de extermínio dos moradores. “Temos que provar até a nossa morte”, disse Raull Santiago, ao se referir à morte de Ágatha Felix, de 8 anos, no Complexo do Alemão, por um tiro de rifle disparado por um policial. O governo do Estado do Rio de Janeiro e seus apoiadores tentaram se esquivar da responsabilidade, atribuindo a bandidos a morte da menina, mas um laudo pericial acabou por comprovar o que os moradores diziam desde o primeiro momento, que a bala foi oriunda de uma arma disparada pela polícia, mesmo sem que houvesse qualquer ameaça no local.

Por sinal, não é de hoje que a violência de Estado assombra os moradores de favelas, nem é exclusividade de um governo de direita – ainda que a situação tenha piorado. Por isso, as falas reforçaram uma posição de autonomia dos movimentos sociais embrenhados nas favelas: nem à direita, nem à esquerda, o que os ativistas defendem é a agenda da favela, que precisa ser pensada em toda a sua complexidade, que inclui, por exemplo, a forte presença das igrejas evangélicas. “Não dá para negar que as igrejas estão dentro das comunidades e que exercem grande influência, mas também levam serviços”, discorreu Raull.

O trabalho de base é apontado como única saída para transformar a realidade social das favelas, a partir de ações que surjam de dentro das próprias comunidades, não de fora, como benesse de parte das elites. “Não queremos receber ajuda de ninguém, queremos trocar”, ressaltou Kdu.

Uma das maneiras de articular as bases é pelos meios de comunicação alternativa, porém isso nem sempre é financeiramente viável. Perguntei a Raull, Rene e Buba se dá para pagar as contas apenas atuando como comunicador alternativo, e os três apontaram sérias dificuldades para isso. Raull e Buba têm outros trabalhos, Rene não, e disse que, depois de muitos anos de luta, consegue se dedicar só ao Voz das Comunidades. De todo modo, para Buba, atuar na comunicação alternativa ajuda a abrir portas, além de ser uma das formas mais potentes de gerar protagonismo dentro das comunidades mais vulneráveis e, com isso, levar a transformações sociais.

Aproveitei para gravar em vídeo um pouco do que pensam esses três importantes comunicadores e ativistas, para saber o quanto a mídia alternativa pode ser transformadora. Também pedi que cada um mandasse um recado aos estudantes de jornalismo. Os trechos das entrevistas seguem a seguir (deem um baita desconto para as imagens sem foco, culpa exclusiva desta cinegrafista amadora).

Essa tal objetividade jornalística (2): tabu a ser desconstruído

Texto sobre um dos maiores tabus do jornalismo, a objetividade jornalística.

Das coisas que descobri ao longo do doutorado: é necessário ter sangue frio para criticar os cânons do jornalismo, porque, ao fazer isso, saiba que virá artilharia pesada contra si por parte de pesquisadores da área. Todos reclamam da profissão, das empresas, fazem críticas a matérias, mas no fim das contas, querem que tudo se mantenha quase do mesmo jeito, com mudanças apenas dos “donos” dos meios.

Um desses cânons intocáveis que ganhou proeminência nas últimas semanas é o da imparcialidade. Bastou o The Intercept Brasil lançar uma série de reportagens sem ouvir o “outro lado” (a série Vaza Jato) e usando termos mais diretos para descrever o que estava divulgando, como algo criminoso, para que vozes analíticas, em coro com uma parte do senso comum, passassem a apontar distorções do bom jornalismo, por ser militante, ativista, ou seja, não isento e, portanto, não profissional. Há também muitos defensores da postura do grupo jornalístico (entre os que me incluo), mas vejo que muitos que elogiam a publicação não são exatamente da área do jornalismo: são da antropologia, das ciências políticas, da sociologia, da filosofia. Sem ser acadêmicos, há também jornalistas que defendem a postura do site, mas gente que já assumiu, cotidianamente, uma posição mais opinativa, e até por isso combate a hipocrisia.

Mas acho que o conceito mais intocável nesse campo, ainda hoje, é o da objetividade jornalística. Eu já sabia que fazer a crítica a esse ideal seria como mexer em um vespeiro, mas mesmo assim resolvi arriscar, e lá está ele na minha tese (ainda não defendida e, por isso, não publicada). Não é o conceito central, mas não deixa de ser um dos mais relevantes, pois é parte do coração do jornalismo profissional tal qual o conhecemos. Essa semana, ao apresentar parte da minha pesquisa no Seminário Permanente de Comunicação e Diversidade do CECS (Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade), da Universidade do Minho, onde realizo o doutorado, meu posicionamento foi alvo de uma saraivada de críticas da professora Sylvia Moretzsohn, de quem sou fã e respeito enormemente, e na ocasião não consegui responder adequadamente (cheguei à conclusão de que até na minha tese isso não está bem esclarecido e vou mexer no texto para me expressar melhor). Por isso, aqui vai mais uma reflexão sobre o tema.

Eu e a professora Sylvia Moretzsohn durante o seminário. Foto do Fábio Marques

O jornalismo tomou a forma que conhecemos no início do século XX, e no Brasil isso aconteceu um pouco mais tardiamente, com a separação clara entre informação e opinião, e com a aplicação de certos procedimentos no tratamento da notícia, tendo como objetivo maior apresentar o fato o mais próximo da realidade.

A ideia é a seguinte: há um acontecimento, presenciado por inúmeras testemunhas, que o veem a uma certa distância e, por isso, cada um tem um ponto de vista diferente. O jornalismo, ao utilizar certas ferramentas (como entrevistas, pesquisa documental e uso de imagens), a partir de uma certa postura (isento, imparcial e neutro, interessado unicamente em buscar a verdade), age como se aplicasse uma lente de aumento em relação a esse acontecimento, que o aproxima do fato, mesmo que não estivesse presente no momento em que o fato se deu. Essa lente, que condensa diferentes pontos de vista, imagens e documentos, tem como pretensão maior não reproduzir o acontecimento, mas apresentar a versão mais verdadeira possível do fato. Essa lente é o que passou a ser chamado de objetividade jornalística.

O problema, já notado nos anos 1970 por pesquisadores como Stuart Hall, é que essa lente tem filtros que determinam o que será visto (e mostrado) e o que não será. E não apenas: essa lente determina como o acontecimento será visto e mostrado. Entre esses filtros estão valores notícia que hierarquizam os sujeitos, as instituições e as relações sociais, e que estabelecem o que é mais importante e o que é menos importante. Mais do que isso, entre esses filtros se escondem ideologias, afinal o texto jornalístico é um tipo de discurso, e como todo discurso está embebido por traços ideológicos, mesmo quando não se percebe claramente isso.

Um exemplo bem recente (e até explícito para muita gente) é a cobertura da reforma da previdência (entre os media tradicionais brasileiros). A abordagem de todos os jornais parte do pressuposto de que a reforma é necessária, dada a situação financeira do governo, de déficit crescente. Nesse sentido, são aplicados todos os procedimentos padrão estabelecidos pela objetividade: levantamento de dados, escuta de especialistas, declarações de governistas e da oposição. Só que não se problematiza o que deveria ser o mais óbvio: o ponto de vista de que a máquina pública não pode ter déficit, tem de ser superavitária, e que diante das perdas de receitas é necessário fazer “cortes” para reequilibrar as contas públicas. Esse ponto de vista é pautado na ideologia capitalista neoliberal, que preconiza o Estado mínimo, e certamente não é o único pensamento possível sobre a atuação do Estado na sociedade.

Como esse tipo de cobertura poderia ser diferente? Por exemplo, ouvindo pessoas comuns. Gente cuja família depende da aposentadoria para viver. Donos de comércios locais que contam como o ingresso das aposentadorias é vital para o seu sustento. Outra forma é sair do lugar comum, e das fontes viciadas que são sempre acionadas, e buscar especialistas que defendem outras posições. Dar realmente espaço à oposição e problematizar o que argumentam, não apenas lançando entre aspas como um “outro lado”.

Só que, na prática, o modelo normativo da objetividade fez com que a rotina de trabalho passasse a reproduzir certas práticas, que passaram a ser cultivadas como se fossem as únicas certas e possíveis. A precarização do trabalho do jornalista, intensificada com a crise sem precedentes do setor, torna essa mecanização ainda mais grave, já que impede que os jornalistas na ativa tenham tempo de pensar. Reproduzir, assim, é bem mais fácil.

Mesmo assim, a objetividade está lá, santa e intocável. E é acionada por todos os lados, tanto por quem age com a melhor da boa-fé, tentando mesmo produzir um jornalismo de qualidade, como por aqueles que querem plantar mentiras, mas sob o manto da técnica e das boas práticas. Sim, é possível simular a objetividade jornalística, porque no fim das contas o discurso jornalístico é performativo (já falei disso antes), por ter de se materializar discursivamente, e o que importa é muito mais o que ele parece ser. Parecendo direto, isento, excluindo todo tipo de adjetivo e até advérbios, apresentando declarações, documentos e imagens, tcharan: “eis um bom trabalho jornalístico”, mesmo não sendo. Muitas das fake news se utilizam desse expediente para se disseminar e certamente é por isso que são tão facilmente difundidas, afinal, se parecem com notícias, são notícias, e são verdade.

Por essas e outras, considerei desde o início da minha pesquisa que eu deveria mexer sim nesse vespeiro e minimamente problematizar esse ideal, para até, quem sabe, negá-lo. Fazer a crítica, porém, não significa pregar negação da realidade, nem muito menos negar a busca pela verdade, como meta maior do jornalismo. Não, caso contrário não é mais jornalismo. Fazer a crítica e até propor que se pense um jornalismo fora da caixa da objetividade é em grande medida deixar claro que essa performance da objetividade (nem que seja decorrente da maior precisão possível) não é suficiente para retomar a confiança que jornalismo perdeu nos últimos anos. Fazer a crítica é entender que mais do que a preocupação em simplesmente apresentar um relato frio e descritivo, baseado em declarações e números, está na hora do jornalismo se expor e mostrar seus procedimentos, suas decisões e motivações. Fazer a crítica é ressaltar a urgência em dar transparência ao relato jornalístico, ainda que isso aparentemente o enfraqueça em um primeiro momento (afinal, a verdade relatada poderá ser refutada a partir da exposição dos procedimentos adotados, que poderão ser questionados). Como já está acontecendo, certamente essa transparência, com o tempo, irá fortalecer os jornalistas que assumirem posicionamentos claros, sem deixar de produzir um jornalismo de excelência, que não só informe, como também emocione, gere empatia e adesão a causas sociais. Afinal, querendo ou não, os jornalistas e outros atores que compõem o espaço público mediático são atores políticos, querendo ou não, que mesmo sob o manto da objetividade interferem enormemente nos rumos que tomam as relações sociais e nas tendências que mantêm ou transformam as estruturas sociais. Assumir esse papel político (não confundir com partidário) é assumir um protagonismo no debate público que pode culminar com a retomada da relevância do jornalismo. Negá-lo é abrir espaço definitivamente para que robôs façam o serviço (que, ainda assim, continuará tendo um viés, afinal a programação de algoritmos é feita por humanos e suas visões de mundo).

Em defesa do jornalismo ativista: o caso #VazaJato, do The Intercept

Desde que o The Intercept Brasil começou a trazer à tona trechos de um vazamento de conversas entre integrantes da Lava Jato, incluindo o ex-juiz Sérgio Moro e procuradores, paralelamente começou uma forte discussão no Twitter sobre o que é o jornalismo e sobre quais são os direitos e deveres do “bom jornalismo”.

Grande parte da discussão gira em torno da ideia de que o The Intercept é “ativista”, por se aliar a hackers para deliberadamente prejudicar a Lava Jato e, como consequência, o governo Bolsonaro. Declarações dadas em momentos diferentes por um dos fundadores do grupo de comunicação, Glenn Greenwald, com críticas ao governo de extrema direita, são usadas como prova do ativismo, o que é alimentado ainda mais pelo fato de Glenn ser casado com o deputado federal David Miranda, do PSol.

Essa não é uma discussão nova, evidentemente, e não é por acaso que é uma das questões que abordo na minha tese. Por sinal, entre minhas principais referências bibliográficas está o livro da pesquisadora norte-americana Adrienne Russell, Journalism as Activism, de 2016 (falei mais sobre o livro em outro post). Na obra, um dos jornalistas-ativistas entrevistados era justamente Glenn, que tem uma citação bastante pertinente: “Não há problema em ser um ativista ou um jornalista; essa é uma falsa dicotomia. O problema é ser honesto ou desonesto. Nem todo ativista é jornalista, mas todo jornalista de verdade é um ativista”[1] (Russell, 2016, p. 109 – tradução livre).

No Twitter, Natalia Viana, uma das fundadoras da Agência Pública, reacendeu essa discussão:

Obtendo esse tipo de resposta:

Foi o próprio jornalismo que ajudou a construir a ideia de que um jornalismo isento e de qualidade necessariamente separa a informação da opinião, é fundamentalmente descritivo, imparcial e equilibrado, construindo um discurso neutro que permita que o público chegue às suas próprias conclusões de maneira livre e sem a influência de qualquer viés. E esse ideal foi apropriado pelo senso comum, sendo por isso mega comum ouvir da boca de não jornalistas o que deve ser ou não deve ser um bom jornalismo.

Só que também não é de hoje que se demonstra o quanto esse ideal é inalcançável, já que o discurso (seja ele qual for) nunca é neutro, passando sempre por escolhas, que no caso do jornalismo, acaba por beneficiar quase sempre os detentores do poder, como concluiu Stuart Hall (1978). Já tratei disso em apresentações acadêmicas e em outros posts, e por isso estou entre os que defendem a urgência de se superar o paradigma da objetividade, pois insistir nesse modelo acaba sendo um tiro no pé, justamente porque sempre vai haver algum viés a ser apontado, algum lado favorecido, e outro prejudicado. Sempre, sempre, sempre.

Ainda assim, não é necessariamente a mesma coisa ser um jornalista e ser um ativista. Um jornalista pode ser alguém comprometido unicamente com a notícia, que busca executá-la com acuidade e boas técnicas para que alcance um grande público e, com isso, se torne relevante (naquele modelo em que as notícias são vistas como um produto à venda, tema tratado há bastante tempo pela professora Cremilda Medina). Já um ativista (seja de que área for) se preocupa com causas sociais, em busca de gerar transformações, e por isso atua com determinados objetivos, aplicando diferentes estratégias para alcançá-los. Além disso, o ativista busca mais do que visibilidade, mas adesão à sua causa, o que faz com que sua relação com o público seja necessariamente mais próxima e intensa.

O jornalista pretensamente puro atua geralmente tendo como base o modelo antigo de comunicação de massa, em que produtores e consumidores estão em lados opostos, bem separados, e em que o fluxo da comunicação é unidirecional, partindo sempre do produtor em direção ao consumidor. Os ativistas atuam em rede e, nesse tipo de estrutura, a comunicação é rizomática, como argumentam Santana e Carpentier (2010), com diferentes conexões, que fazem com que a comunicação parta de diferentes origens, circulando em diferentes direções, e sendo transformada a partir da participação de diferentes atores.

A série da #VazaJato, do The Intercept Brasil, é exemplar quanto a todas essas diferenças. Logo na primeira publicação da série, o grupo jornalístico apresentou um texto em que expôs os procedimentos adotados e que levaram à decisão de trazer à tona as conversas vazadas, sob a justificativa de que “A liberdade de imprensa existe para jogar luz sobre aquilo que as figuras mais poderosas de nossa sociedade fazem às sombras”. Essa postura reforça a antiga visão do jornalismo como watchdog, ou cão de guarda, da sociedade, e não necessariamente distancia a proposta do The Intercept de outras publicações tradicionais. Esse distanciamento se dá principalmente na forma como os jornalistas que atuam na empresa se expõem em outros espaços de visibilidade. Como exemplo, em diferentes postagens no Twitter, o editor executivo do site, Leandro Demori, deixou claro o posicionamento da equipe, ao enfatizar que os objetivos do grupo não se restringem a deixar a sociedade informada; busca-se gerar transformações sociais reais.

Esse posicionamento é reforçado ainda em entrevistas, dadas aos mais diferentes programas, tanto do mainstream, como alternativos, podcasts, blogs, com viés de esquerda, mas também de direita. Por sinal, as conexões entre diferentes atores do ambiente mediático que vão se desenhando ao longo dessa cobertura são bastante heterogêneas e absolutamente incomuns, com parte do vazamento sendo partilhado com uma figura como Reinaldo Azevedo (notório anti-petista) e outra parte com a Folha de S. Paulo (antiga entusiasta da Lava Jato), com o intuito de afastar a cobertura de um viés político-partidário e enfatizar sua relevância jornalística, mas sem deixar de demarcar a postura ativista, em prol de mudanças sociais. A fala de Glenn ao Democracy Now, programa de jornalismo alternativo dos Estados Unidos, confirma esse posicionamento.

Mas é ruim, ou errado, ser um jornalista ativista, que expõe seu ponto de vista e suas escolhas, e não se restringe a informar, mas age para gerar transformações sociais reais? De forma alguma. Mais do não ser crime, como argumentou a Natalia Viana, ser um jornalista ativista é mais do que nunca necessário nessa nossa sociedade da desconfiança (Rosanvallon, 2008), em que tudo é desacreditado, o que, ao mesmo tempo, favorece as chamadas fake news, que se apoiam na fórmula da objetividade para alcançar algum efeito de verdade e, assim, enganar os “tontos”. Se realizar um trabalho que busca ser realmente relevante para a sociedade, sem omitir posicionamentos, dando transparência à produção, sem maquiagens que simulem uma neutralidade inalcançável, é ser ativista, que sejamos todos jornalistas ativistas, pois talvez esse seja o melhor caminho para restabelecer a credibilidade dos media e, com isso, a própria relevância do jornalismo.

Referências

Hall, S. (1978). The social production of news. In S. Hall (Ed.), Policing the crisis: Mugging the State, and Law and Order. London: Macmillan.

Rosanvallon, P. (2008). Counter Democracy: Politics in an age of distrust. Cambridge, New York: Cambridge University Press.

Russell, A. (2016). Journalism as Activism – Recording Media Power. Cambridge: Polity Press.

Santana, M., & Carpentier, N. (2010). Mapping the rizhome. Organizational and informationsl networks of two Brussels alternative radio stations. Telematics and Informatics, 27(2), 162–176. Retrieved from http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0736585309000483


[1] Texto original: “It is not a matter of being an activist or a journalist; it’s a false dichotomy. It is a matter of being honest or dishonest. All activists are not journalists, but all real journalists are activists”.

Like oil and water? Challenges to journalism-activism hybridism

Trago o texto que guiou minha apresentação no Congresso da ICA (International Communication Association), que aconteceu em Washington D.C., no final do mês de maio de 2019, onde tive a chance de participar de um painel sobre jornalismo e ativismo com a participação dos pesquisadores Adrianne Russell (que presidiu a mesa), Gino Canella e Urszula Pruchniewska.

My presentation is about the articulations between the standards of traditional journalism and the political engagement which characterizes many alternative media projects, what dialogues directly with Adrianne Russell’s book, Journalism as Activism (2016). But my focus is a little different: I am interested in the meanings produced by this kind of hybrid content, mainly in audio-visual productions, to grasp what prevails and to identify changes in the journalistic practices, and eventually in the journalistic field.

The journalism was structured as a professional organization at the beginning of the twentieth century (Schudson, 1982, 2001), guided by specific rules and values ​​that allow us to identify the journalistic practice and its discourse, establishing an ideology (Deuze, 2005). The journalistic objectivity is the basis of its hegemonic model, which is supported by the separation between information and opinion, the search for impartiality and balance, as well as the emphasis on the truth as the main goal to be reported. However, what is the truth? Since the 70s, many authors started to criticize this model, as Stuart Hall (1978), who argued that objectivity functions as a discursive strategy to maintain the status quo, by reproducing the structures of power, which happens, for example, by disguising the biases and privileges that are implicit in the rules which form the news values (Galtung & Ruge, 1965; Harcup & O’Neill, 2001).

Studies based on critical discourse analysis reinforced the critics, by demonstrating the impossibility of building a neutral discourse (Charaudeau, 2006; van Dijk, 2005). On the contrary, every discourse is a social practice immersed in the disputes and tensions that mark the social life, and because of that, every text or speech have different marks of beliefs, values, cultures, and ideologies that define biases. Rather than avoid adjectives or adverbs, keeping a descriptive approach, the journalistic discourse takes positions when determining, for example, what is the most important, what is less important, who should be heard, and who should not, which space certain information deserves, etc.

Even under these critics, the standards of journalistic objectivity remain the most recurrent in the mainstream media. It continues related to the “good” journalism, the “professional” journalism (Carpentier & Trioen, 2010), in opposition to the “amateur”, or the low-quality journalism. Such negative features are often associated with alternative media publications.

On the other hand, with all the social transformations produced by the deep mediatization (Couldry & Hepp, 2017), we have also seen changes in media consumption, which have reached the news and interfered in their production. Among the consequences, there is the multiplication of new actors who produce and distribute journalistic messages, which makes the field increasingly segmented and fragmented and favors hybridities.

When we talk about hybridity, we talk about the intersection between fields, which can change practices and create new meanings. In the journalistic field, one of these possible hybridities is that one between the journalism, and its values and roles, and the political engagement, as Adrienne Russell showed in her book, including in the mainstream media. This approach results in new practices and new priorities ​​that aim to guide news productions, which is no longer handled exclusively by business issues, but by a wish for social justice, for example.

These hybridities have different intensities, sometimes leaning more towards the journalistic values ​​and norms, and in other moments towards activist’s values ​​and practices. In this work, I choose two media projects that integrate my Ph.D. research, to discuss how they articulate characteristics considered incompatible, in many ways, like oil and water, but which are creating relevant mediatic discourses by combining information and political engagement.

The first alternative media project that I choose is from Brazil, the Collective Papo Reto, which operates in the Complexo de Favelas do Alemão, in Rio de Janeiro. The second is from Spain, El Salto, an alternative media cooperative that acts all over the country. Precisely because they are very different experiences (both are non-profit projects, but the Brazilian functions with voluntary work, while the Spanish pay to its employees), these two projects present quite impressive results, useful both to better understand how these hybrid journalistic projects are done and to point out ways and critics that can lead to an improvement of those practices that are essential to make the media environment more plural.

To this presentation, I analyzed four videos produced by these two groups[1]. To do that, I have created a framework based on the multimodal semiotic analysis, and especially on the concepts of discourse and semiotic modes by Fairclough (1995), Kress and van Leeuwen (2001), and Ledin e Machin (2018), as well the journalistic standards as the main parameters to interpret such productions.

I have developed this framework of analysis for my thesis, which I am near to conclude[2]. The procedures of analysis include the transcription of all the semiotic modes (images, sounds, verbal discourses), the description of the journalistic characteristics, as well the detailing of the values related to the political engagement, to interpret and synthesize the findings.

The idea that journalism is a performative discourse, developed by Broersma (2010), was fundamental to operationalize this analysis. The author considerers that the journalistic discourse is built to persuade people to believe that it tells the truth, and it is possible through a strategy that depersonalizes and standardizes the practice, establishing a performative power. In that way, the objectivity norm is efficient by providing a neutral and authoritative language, which transforms an interpretation into a truth. This strategy can be called performative objectivity.

In my Ph.D. research, I identified the emphasis in the performative objectivity in different journalistic videos produced by alternative media groups, to a greater or lesser degree, even though practically all the videos assume a particular point of view, denouncing social injustices committed mainly by governments. A feature traverses all the analyzed videos: the more marks of political engagement are evidenced, the weaker is the performative objectivity discursive approach and vice versa. The more emphasis on values ​​associated with objectivity, the lighter the marks of political engagement.

Let’s go to the examples. The Spanish El Salto demonstrates a strong concern to preserve the values ​​of objectivity, although it builds a narrative that emphasizes emotional elements, linked to the activism. It happened, for example, in the video about a protest against the death of a Senegalese immigrant in the Center of Madrid, after being persecuted by police officers because he worked as a hawker. A mainly visual narrative was constructed, which sought to give details of the demonstration, by articulating proximity shots, which evidence faces and the behavior of the participants, to open plans, which add context and quantify all the activities, highlighting their relevance. But the camera was not immersive, maintaining a certain distance all the time, as a witness of the protest, interested only in showing it, and not as a participant. On the other hand, the manipulation of the sound, retaining parts of songs and speeches produced by the demonstrators, which refer to the spirit of struggle and resistance against oppression, aggregates subjectivity elements that distance the discourse from objectivity, appealing to feelings such as empathy and solidarity that add support to the riot. As a result, the appeal to journalistic values, however, was stronger, by emphasizing descriptions and privileging as the primary source of information a public authority, which spoke as the only one legitimized to give an opinion on the case. Among the many immigrants who participated in the protest, who could narrate their own experiences as proof of the persecution suffered, no one was interviewed in this report.

The Collective Papo Reto does not privilege the visual narrative in the analyzed videos, but the oral one, prioritizing either the speech of favela residents or the reporter’s witness, as the main significant elements. In the first video, the reporter interviewed motorcycle taxi-drivers, who denounced police officers’ extortion and violent actions. During the interviews, the camera remained on the floor, showing only parts of the respondents’ bodies, but not their faces, to protect them against possible reprisals. In the second video, the reporter talked about the effects of a police operation in the favela where a shooting happened, resulting in injured residents and the death of a baby. While the reporter was spoking, he walked through the favela, articulating information to his own opinion about the causes and consequences of the so-called “war on drugs” undertaken in Rio de Janeiro.

In both videos made by Collective Papo Reto, the presence of the reporter with his voice acts as the central proof that generates a truth effect, which is further emphasized by the speech of interviewees, which reinforces the alternative media role against social injustices. He speaks as a reporter, but also as a dweller, and as a person who suffers with the government attacks. In that way, he uses the pronoun “we” to explain what is happening, in an immersive approach. So, while this discursive strategy enhances a truth effect, it emphasizes the activist role, when it avoids the discursive strategies usually applied in journalism, giving up the performative objectivity. The intention remains to display the truth but exposing the tensions between two different sides, one side of the slum inhabitants, who are the victims, and the braves (the reporters’ side), and the other side of the police authority, which is unmasked as executioners of a policy that only harms the most defenseless people.

At the same time, by not producing an elaborate and attractive content, the more engaged media limit their potential for transformation, which happens because it limits their scope by applying a language recognized only by a small group, formed by the local inhabitants, and not contextualizing the event.

These two experiences evidence the persistence of the symbolic conflict between the interest of producing informative content and, at the same time, inspiring social transformations. But we consider that this tension can be overcome, from the moment one reduces the concern in evidencing the performative objectivity. Thus, this model presents limitations that go beyond the problem of bias, clearly delimiting the subject and who can speak, according to the rules that privilege the status quo. By this logic, even in the alternative media, projects that prioritize the performative objectivity as their main discursive strategy maintain the communication as a privilege of few, also when it exposes a powerless people’s struggle.

Thinking about ways to overcome the objectivity paradigm, with a model of journalism that stands outside the box of objectivity (Raeijmaekers & Maeseele, 2015), at the same time reflecting on the discursive strategies employed to reach a larger audience, is one of the challenges that the research in communication and journalism must face in partnership with alternative media groups.

References

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  • van Dijk, T. A. (2005). Discurso, Notícia e Ideologia – Estudos na Análise Crítica do Discurso. Porto: Campo das Letras.

[1] https://www.facebook.com/ColetivoPapoReto/videos/1509818419144732/; https://www.facebook.com/ColetivoPapoReto/videos/1417897905003451/; https://www.facebook.com/ElSaltoDiario/videos/10155944344390469/; https://www.facebook.com/ElSaltoDiario/videos/10155940403060469/.

[2] In my thesis, I analyse 45 videos, made by 25 groups from Brazil, Spain and Portugal, from 01/10/2017 to 30/03/2018 (a period of six months).

O jornalismo vai morrer?

Neste post, faço uma reflexão sobre as mudanças que afetam o jornalismo e que o ameaçam diretamente.

O título traz uma pergunta que vive me rondando, até por ser professora de jornalismo e me preocupar enormemente com os jovens que ingressam no curso e não têm culpa do cenário decadente em que estão entrando. Será que o jornalismo vai morrer? O que será do jornalismo daqui a 10, 20 anos? De repente, eis que me deparo com essa questão, da forma mais direta possível, em uma palestra do professor Silvio Waisbord, no Congresso da ICA, em Washington. E, para o meu desespero, eis que a resposta dele não foi das mais otimistas: “…é, se continuar do jeito que está, o jornalismo tal e qual o conhecemos está com os dias contados”. Será mesmo?

Professor Silvio Waisbord, falando sobre o jornalismo de qualidade, em conferência sobre o jornalismo digital, na Universidade George Washington (maio/2019). Todas as fotos inseridas neste post foram feitas por mim.

Eu mesma, sempre que sou perguntada sobre isso, tento ser otimista e respondo com uma outra pergunta: “você consegue imaginar uma democracia saudável sem jornalismo?”. Respondo isso porque houve mesmo um tempo em que se considerava essencial, para a democracia, a existência de meios de comunicação que atuassem como os mediadores da sociedade, como cães de guarda do interesse público, revelando tudo o que pudesse ser considerado de interesse público para que a população, ciente e consciente, pudesse decidir o seu próprio destino. Terceiro presidente dos Estados Unidos, Thomas Jefferson chegou a afirmar que, se tivesse de optar entre um governo sem jornais, ou jornais sem um governo, não hesitaria em escolher a segunda opção. A frase, dita em 1787, parece ter sido invertida nos dias de hoje: governantes têm feito de tudo para acabar com o jornalismo, desqualificando-o de todas as formas possíveis (os exemplos mais imediatos que vêm à cabeça são Trump e sua versão tupiniquim, Bolsonaro, mas infelizmente não são os únicos).

Frase original de Thomas Jefferson: “Were if left to me to decide whether we should have a government without newspapers or newspapers without a government, I should not hesitate a moment to prefer the latter.” (1787) Local: Newseum, Washington D.C.

Claro que a crise do jornalismo não é causada só pelo desprezo ou pelo ódio de certos governantes. A relação entre os media e o poder nunca foi fácil, já que os jornais se estabeleceram, sobretudo a partir do século XX, como vigilantes do poder, sempre atentos para apontar distorções, o que mais de uma vez levou à queda de governantes. O caso Watergate é um dos exemplos mais lembrados, mas também temos a nossa versão caseira – a queda de Fernando Collor de Melo, em 1992, impulsionada, entre outras coisas, pela entrevista de seu irmão, Pedro Collor, à revista Veja.

A crise do jornalismo decorre de um contexto muito mais amplo, que tem a ver com a mudança no consumo mediático e com a quebra do modelo de financiamento dos meios de comunicação (antes baseado na publicidade) – falei um pouco sobre isso em um outro post. Entre os efeitos, vemos cada vez menos projetos jornalísticos em funcionamento, se restringindo aos “grandes”, com o sumiço dos empreendimentos locais, mas, ao mesmo tempo, assistimos o surgimento de inúmeros atores no ambiente midiático, que passam a difundir conteúdo jornalístico, mesmo que, na maioria das vezes, seja um conteúdo híbrido, misturado com humor e ativismo político.

Com as grandes empresas monopolizando o cenário, mas em uma situação de fraqueza, já que, sem dinheiro, as redações estão ficando menores, e os jornalistas são cada vez mais obrigados a fazer de tudo um pouco, o que os impede de aprofundar o que quer que seja, as grandes reportagens se tornaram mais raras, e passou a proliferar conteúdo declaratório, sem comprovação de nada, como recentemente problematizou a ombudsman da Folha, o que torna o jornalismo um caos cada vez mais descartável. Para Waisbord, ou o jornalismo volta a ter qualidade, retomando seu papel social de apresentar histórias de interesse público, ou o caminho para o fundo do poço não vai ser interrompido.

Mesmo nesse caos, o jornalismo, enquanto instituição e prática, segue com a ladainha de que ter qualidade é se ater ao fato, ser objetivo, descritivo, apresentar os diferentes lados da história, sem envolvimento nem qualquer lance de emoção. A prisão aos referenciais normativos tradicionais não permite que o jornalismo saia do seu pedestal e deixe de agir como “babá” da audiência, mantendo o monopólio do que é notícia, como argumentou outra grande teórica do campo, Barbie Zelizer, em outra palestra da ICA.

Palestra da professora Barbie Zelizer

Claramente, o caminho atual não tem volta. O jornalismo não vai voltar a monopolizar a notícia, nem adianta querer empurrar goela abaixo do público notícias que não lhes interessa. As pessoas estão cada vez mais personalizando seu consumo mediático, o que fazem tanto ao buscar assuntos que lhes interessa, como por interferência dos algoritmos das redes sociais, que, aí sim, “escolhem por nós” o que iremos ver, e isso não parece que irá mudar. Ainda assim, vale seguir o conselho de Waisbord e pensar um pouco em como era esse jornalismo relevante, para refletir sobre os rumos que podem ser tomados para recuperar o campo.

Uma das características desse velho jornalismo era que ele caminhava de mãos dadas com lutas sociais encampadas por minorias. Essa característica é realçada, por exemplo, em diferentes espaços do Newseum, um museu em Washington dedicado às notícias, o principal produto do jornalismo. A luta pelos direitos civis das pessoas negras nos Estados Unidos, a luta das mulheres pelo voto e pela igualdade, a luta em prol da comunidade LGBT, a denúncia contra a guerra e contra a fome. Todas essas lutas ganharam protagonismo pelas mãos do jornalismo, e isso é celebrado no museu, o que nos enche de orgulho. Lá, não é destacada a estratégia dos clickbaites nem a inclinação em apoiar posições do mercado, mesmo contra os mais vulneráveis. Isso que se tornou o jornalismo tradicional nunca foi o ideal do jornalismo. Por isso, vale perguntar: quando o jornalismo se abraça com valores de um liberalismo econômico, definidos pelo mercado, e abandona os valores sociais e da cidadania, passa a servir para quê?

Composição do Newseum que mostra a cobertura de protestos de jovens estudantes negros pelos seus direitos civis

A saída passa, assim, para começo de conversa, em se redefinir o jornalismo, ou melhor, os jornalismos. Porém, passa também por redefinir as estratégias de abordagem, deixando de achar que o público não pensa por si só, não é autônomo. Nesse processo, tenho defendido (e fiquei feliz demais ao saber que tanto Barbie Zelizer, como outro autor muito importante nos estudos do jornalismo, Nick Couldry, partilham o mesmo pensamento) que se deixe de lado de uma vez por todas o ideal normativo da objetividade, o que significa deixar de querer parecer que não há opinião implícita nas notícias, não há viés, e que tudo o que está ali é a mais pura e profunda verdade. O público não acredita mais nesse canto da carochinha, o que é bom, mas ao mesmo tempo aprofunda o caos, já que tudo pode ser alvo de desconfiança (um ambiente mega fértil para a proliferação de desinformação). Por outro lado, ao expor exatamente seu ponto de partida, sua visão de mundo, e deixar de lado a hipocrisia, os meios de comunicação podem recuperar a confiança de parte do público, o que deve ser feito, ainda, com a abertura real dos espaços de interlocução com essa audiência, que quer participar de verdade das decisões editoriais e da produção da notícia, falar e ouvir respostas, e não apenas ocupar um espacinho do “painel do leitor”.

Os meios alternativos podem ter um papel muito importante nesse sentido, mas também com imensos desafios a enfrentar, sobretudo no que diz respeito ao financiamento e à qualificação dos integrantes das equipes, para produzir conteúdos mais contextualizados e interessantes. Conhecer experiências bem-sucedidas nos dá um bom alento, mas ainda está longe de significar que elas salvarão o jornalismo. De todo jeito, prefiro continuar otimista, e acreditar que não há como ter uma democracia desenvolvida sem um bom jornalismo. Nós, os jornalistas e pesquisadores da área, temos o dever de retomar a importância da profissão.

P.S.: Viajei para participar do Congresso da ICA com o apoio da FLAD (Fundação Luso Americana para o Desenvolvimento), de Portugal.

Academia, um local de poucos: sobre racismo e elitismo

Há muitas mulheres atuando em universidades como professoras, pesquisadoras, gestoras. Mas há poucas que alcançam postos de poder e posições mais destacadas. Já falei disso em outro post, considerando que se trata de um sinal claríssimo, entre outros, do quanto a academia é um ambiente machista. Porém, constatar isso é muito pouco. Precisamos reconhecer o quanto a academia é um dos ambientes mais excludentes, mantendo uma aparência de abertura, aceitação e diversidade. Sim, a academia é machista, racista e sobretudo elitista, sendo profundamente estruturada por mecanismos que vão, pouco a pouco, eliminando as chances de mulheres, negros, indígenas, pessoas trans, pessoas que têm alguma deficiência e, principalmente, pobres, de participar efetivamente do campo.

Essa história, lógico, não é nova, mas no Brasil, com a criação das cotas raciais e econômicas, além das bolsas que permitiram que muita gente das classes mais baixas tivesse a chance de cursar um mestrado e um doutorado, o ambiente acadêmico parecia ter mudado um pouco (mudança que, no fim das contas, está sendo mega ameaçada pelas ações desse desgoverno que pilha o país). Quando a gente muda o foco de análise, e passa a usar um filtro mais alargado, a história é outra, ou seja, constatamos que as exclusões continuam muito presentes.

Confesso que a ficha só caiu pra mim com mais clareza agora, em um evento gigantesco nos Estados Unidos, o Congresso da ICA (International Communication Association). O evento acontece em Washington D.C. e eu vim para participar de um painel sobre jornalismo e ativismo. Sinto que é um imenso privilégio estar aqui, por ser da América Latina, mulher, de origem nada abastada, e que segue ralando para alcançar algum lugar ao sol nesse campo da pesquisa em comunicação. Também é uma enorme oportunidade de ver pessoalmente muitos dos figurões cujos textos estão sendo importantes para a minha tese, e principalmente para ouvi-los dizer coisas que corroboram demais com o que estou escrevendo (em outro post vou falar disso). Mas foi meio chocante, em um primeiro momento, quando me dei conta de que estava em uma sala sem nenhuma pessoa negra, nem na plateia, nem entre os palestrantes. E, de novo, em uma nova sessão de trabalhos, apenas uma pessoa negra na plateia. E, mais uma vez, no máximo uma pessoa na audiência. Entre as nove sessões que eu assisti, apenas uma contou com uma pessoa negra entre os painelistas, uma pesquisadora do Kênia, presente porque o tema assim o requeria (falava das diferenças entre Leste e Oeste pós fim da Guerra Fria).

Sessão sobre consumo midiático durante Congresso da ICA, em Washington D.C: mais uma vez, só havia uma pessoa negra na plateia (no cantinho esquerdo da foto), e nenhuma entre os palestrantes

Se estendermos essa reflexão para os autores que citamos nos nossos trabalhos acadêmicos, quantos são negros? Mais ainda, quantos são mulheres negras? Possivelmente, dá para contar nos dedos – fazendo aqui uma autocrítica, eu mesma cito pouquíssimos, ainda que tenha, entre os meus autores prediletos, Stuart Hall, sempre muito acionado. Isso não acontece à toa: simplesmente são poucos os negros que chegam à academia, menos ainda os que concluem um doutorado, e menos menos ainda os que ingressam na elite do campo acadêmico internacional. Como interpretar isso? Racismo.

Acho que estar nos Estados Unidos (pela primeira vez, por sinal) contribuiu para que essa percepção se tornasse ainda mais avassaladora. Afinal, o país tem uma diversidade imensa, e a população negra é praticamente onipresente, mas ocupando determinados postos de trabalho, como no atendimento ao público, servindo nos restaurantes, fazendo a segurança de espaços privados, na polícia e na limpeza das ruas. Será que não haveria pessoas negras norte-americanas interessadas em produzir pesquisa em comunicação? Certamente, há. E, certamente, poderia haver mais ainda. O que parece não haver é abertura no campo para aceitar as diferenças.

As exclusões, como falei, não se restringem ao gênero, à etnia, mas afeta especialmente as condições sociais, o que é delimitado por exigências muito sutis, como a língua e a linguagem. Se é difícil para quem fala inglês, mas não pertence ao “universo” previamente delimitado pelos preconceitos que constroem muros nas relações sociais por razões absurdas, imagina para quem não fala. A academia cria coerções que incluem a adesão a uma determinada linguagem, a determinadas técnicas, a determinados métodos, para que uma produção seja aceita. Mas, para além disso, é preciso ter fluência em outros idiomas, o que nem sempre é fácil para quem é de origem humilde, tem que trabalhar durante o dia e estudar à noite, e ainda virar a noite para concluir uma monografia (esse foi o meu caso). Penso nisso toda vez que dou meus tropeções na língua escolhida para internacionalizar a ciência, mas penso mais ainda que essa obrigatoriedade naturalmente se torna um obstáculo, nutrindo uma natureza excludente que deveria ser incompatível com o espírito acadêmico.

Ah, alguns podem alegar, mas para manter a qualidade, a ciência precisa ser excludente, precisa ser exigente. E quem disse o contrário? Discuto aqui a construção de barreiras que impedem que pessoas com alguma diferença consigam produzir um trabalho de qualidade e se destacar no meio acadêmico. Discuto que as ausências não são coincidência, e sim a materialização das relações hegemônicas que perpetuam as desigualdades. E afirmo que, ao constatar tudo isso, senti vergonha de fazer parte dessa farsa.

Para que mudanças sejam realmente possíveis, é preciso, primeiro, identificar o problema, para em seguida discutir à exaustão possíveis saídas, que certamente deverão passar por mobilizações e luta. Afinal, não serão atitudes individuais, ou histórias de “sucesso”, que farão a diferença, mas a ação política que pressione as instituições a mudar. Por isso, continuarei no campo. Mas não com os olhos vendados, achando que é tudo lindo, divino, maravilhoso. Como as demais esferas da vida pública, a academia é palco de imensas distorções e merece ser criticada e problematizada. Reduzir as desigualdades no meio acadêmico é crucial para reduzirmos, também, no restante da sociedade.

Como os jornais estão se canibalizando: uma carta ao jornal O Povo

A frase de Clay Shirky escrita em 2008 choca ainda hoje: “a sociedade não precisa dos jornais. Nós precisamos é do jornalismo”. O trecho integra um artigo em que o autor norte-americano argumenta que o foco da defesa do jornalismo não deveria recair sobre os jornais impressos, que mais cedo ou mais tarde vão sucumbir pelas mudanças geradas pelo ambiente digital. O que deve ser defendido, na opinião dele, é uma prática jornalística que de fato responda às demandas da sociedade, e não fique presa à sua própria existência, como um fim em si, iludida pela falsa ideia de que seu papel é tão importante para a manutenção da democracia que se confunde com a própria democracia.

Claro que os jornais são importantes, claro que eles foram fundamentais para o desenvolvimento das bases da democracia em todo o mundo democrático, mas isso não apaga os equívocos que o setor dos media cometeu, até mesmo em sentido antidemocrático, para defender seus próprios interesses, em diferentes momentos da história. Um desses equívocos foi, durante muito tempo, a principal estratégia de negócios dos jornais: sufocar iniciativas de pequeno e médio porte, por meio do abuso do poder econômico e da influência política, levando-as a fechar e tornando o campo mediático bem mais concentrado e, ao mesmo tempo, menos plural. Agora, como alegam Broersma e Peters (2013, p. 5), “depois de comerem todas as outras espécies, eles (os jornais) canibalizam a si mesmos”.

Saturno devorando a su hijo (1819-1823), obra de Francisco de Goya, retrata o deus Cronos (Saturno, na mitologia romana), que comia seus filhos por temor de ser destronado por um deles. É uma metáfora sobre o passar do tempo. Aplicada ao jornalismo, a metáfora reflete as ações canibalescas que tem sido aplicadas pelos jornais contra os seus próprios jornalistas em resposta às mudanças no ambiente mediático (para se “defenderem” da perda de $$)

Dia após dia, assistimos essa canibalização nos passaralhos que assombram as redações de tempos em tempos e na exclusão de direitos, negados não só a novos trabalhadores, mas também aos antigos, que passam a se sentir cada vez mais descartáveis e desestimulados a produzir algo de qualidade, uma vez que se valoriza mais o número de cliques e likes do que o potencial transformador de uma boa reportagem. O que os jornais esperam com esse tipo de atitude eu não sei exatamente: equilíbrio financeiro? Lucro? Ganhar mais leitores? Posso falar apenas sobre o que tem sido recorrente: a queda nas vendas e nas receitas só tem se acentuado, e isso se dá principalmente porque os jornais preferem abrir mão do seu principal capital simbólico, o bom jornalismo, conquistado a duras penas pelos seus jornalistas. Se olhassem para o lado (dos leitores), esses mesmos jornais perceberiam que descartar o jornalismo e abraçar os fait divers (ou os chamados clickbaits, em tempos de redes sociais) é exatamente o que os torna socialmente irrelevantes e, por isso, desnecessários.

Falar é fácil, podem alegar alguns gestores de mídia impressa, o difícil é colocar em prática soluções de longo prazo que de fato deem segurança financeira aos negócios. Afinal, sem dinheiro, não há jornalismo. De fato, ainda não surgiram soluções definitivas para essa encrenca, mas algumas experiências mundo afora têm demonstrado que uma das saídas passa pelo bom jornalismo. Falo do que acontece com o The Guardian, o El Diario.es (Espanha), o Buzzfeed, projetos empresariais que têm se mantido sustentáveis ao investir em boas reportagens. Tá, no Brasil as pessoas leem menos, têm um menor nível educacional, têm menos dinheiro, então é claro que os jornais vão sofrer mais para sobreviver, principalmente nas cidades mais pobres, como é o caso de Fortaleza (CE). Sim, tudo isso é verdade, mas exemplos como o da Agência Pública também sinalizam que ainda há procura por um bom jornalismo, que defenda o interesse público, fiscalize os poderosos e coloque em evidência problemas sociais, sempre à frente dos interesses privados.

Mas, aí, entram em jogo as tais consultorias, ligadas ao “mercado”, que chegam nas redações e mandam cortar aqui, ali, esmagando as rotinas de trabalho, inviabilizando o crescimento profissional, e agora, mais recentemente, até mesmo cortando direitos conquistados há anos pelos trabalhadores do setor, como se isso fosse normal e aceitável. Como não têm para onde ir, os trabalhadores muitas vezes aceitam calados, afundando seus problemas financeiros e se tornando mais e mais desiludidos com a profissão. O sonho de ser jornalista, que se materializa quando publicamos a primeira matéria de capa num jornal, se transforma em um pesadelo.

Para completar, os trabalhadores que demonstram a insatisfação, buscando defender seu último naco de dignidade, são acossados, assediados, sendo que alguns são tomados como exemplos (e, por isso, demitidos) para mostrar aos outros que sim, é melhor ficarem calados se ainda quiserem manter seu salário cada vez mais miserável. E, olha a ironia, quem são os algozes dos jornais? Os próprios jornalistas, mas aqueles que conquistaram um carguinho de poder, e que, mesmo sendo empregados, deixaram de se enxergar como trabalhadores (será que se sentem empresários?) e, por isso, não veem nada de errado em aceitar cortes de direitos receitadas por figurões do “mercado” que nada têm a ver com o jornalismo.

Tenho vergonha do que está acontecendo no setor, e sobretudo do que o jornal O Povo está fazendo com os seus jornalistas. Falo do jornal O Povo pois atuei ali durante três anos, tenho muitos amigos, ex-alunos, e tenho assistido atônita a piora nas relações trabalhistas que tem sido aplicada de uns tempos para cá. Atitudes semelhantes estão sendo tomadas também pelo seu “concorrente” (que, nesses momentos, atua como parceiro), Diário do Nordeste, mas vou me referir especificamente sobre O Povo, que é o caso que conheço melhor.

Não é de hoje que as condições não são as ideais, mas havia alguns benefícios que compensavam sacrifícios e serviam como complemento relevante para os salários dos repórteres, como as diárias de viagem, o auxílio creche e as bolsas de estudo para os que têm filhos, o adicional para os repórteres que cobriam polícia. Do nada, cortaram alguns desses direitos e ameaçam tirar os outros, alegando falta de acordo com o sindicato dos jornalistas, mas sem levar em conta que os prejudicados nesse impasse são os jornalistas da casa, aqueles que se desdobram para produzir conteúdo multiplataforma, quem dá vida e sentido à empresa.

Como professora de jornalismo, há algum tempo me incomoda pensar que a universidade sempre formou jornalistas para serem empregados dessas empresas de comunicação. Saímos do curso sem saber fazer outra coisa, acreditando que só há vida para um jornalista dentro de uma redação (seja de jornal, TV, rádio). Estudar os media alternativos e a prática do jornalismo alternativo me fez mudar radicalmente de ideia, e hoje penso que devemos formar jornalistas capazes de atuar principalmente por conta própria, em pequenas iniciativas, ou grandes, mas com autonomia, mobilidade e espírito desbravador, para não ficarem à mercê de empresas que não prezam o jornalismo, apenas a sustentabilidade financeira de seus acionistas. As empresas, claro, seguem sendo importantes, dão empregos e asseguram a renda de muitas pessoas, sendo uma verdadeira tragédia que se degringolem do jeito que está acontecendo. Isso, porém, não lhes dá o direito de massacrar ninguém, o que vai, inclusive, contra os princípios da democracia e, consequentemente, do próprio jornalismo. Como um jornalista vai falar sobre justiça social se ele não pode defender sequer os seus próprios direitos? Que jornal pode falar em democracia quando pratica assédio moral para calar a boca de seus próprios trabalhadores? 

Por essa e por outras, não devemos defender os jornais. Precisamos defender o jornalismo, como uma prática essencial para a sociedade democrática. Como o jornalismo é produzido por jornalistas, devemos repudiar todo tipo de ação que corroa a profissão. Certamente não serão os jornais que irão “salvar” o jornalismo, mas sim seus jornalistas. Por isso, lanço aqui meu repúdio ao jornal O Povo e minha solidariedade a todos os colegas que têm sido perseguidos e humilhados pelos executivos desse jornal.

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Orientadores fantasmas, sanguessugas e messiânicos

Todos os que já passaram pela experiência de fazer um mestrado ou um doutorado sabem da importância do orientador, para o bem ou para o mal. No meu post anterior, falei de algumas expectativas que devemos ou não ter em relação a esse personagem, mas minha abordagem acabou tendo um viés muito mais positivo, afinal tenho tido sorte, sempre contando com a supervisão de professoras maravilhosas. Infelizmente, essa não é necessariamente a regra, como bem me lembrou a querida Grazi Albuquerque, e por causa da intervenção dela, decidi falar sobre o outro lado dessa moeda, dos maus orientadores.

Todo o problema começa porque, independentemente de ter um bom ou um mal orientador, em geral nós, estudantes de pós-graduação, não temos como saber exatamente o que seria uma boa ou uma má orientação. E justamente por essa falta de conhecimento, acabamos criando às vezes expectativas que não serão atendidas, ou aguentando maus tratos, desaforos ou, o que é até mais comum, o silêncio dos (des)orientadores, o que gera culpa (será que estou fazendo alguma coisa errada? Ou será que estou sendo exigente demais?) e aumenta o sentimento de solidão do orientando.

Esse sentimento se amplia ainda mais pela falta de espaços de troca de experiências entre os pós-graduandos. Trabalhamos sozinhos e acabamos aguentando todas as agruras da pesquisa também sozinhos. Mas não precisa ser assim, e por isso mesmo, sempre que possível, quando encontro colegas que estão no mesmo barco que eu, acabo abordando a relação com os orientadores, o que me permite ter alguma noção das práticas que rolam nesse universo académico. E os relatos não são muito animadores.

A partir desses relatos, pensei em três tipos de péssimos orientadores que são muito comuns. Claro que não são os únicos (não se trata de uma pesquisa a sério, como se diz aqui em Portugal, mas apenas uma síntese feita a partir de impressões), e por isso mesmo peço que, quem tiver outros exemplos, me mande nos comentários do blog, que depois posso até preparar outra postagem com uma continuação dessa reflexão. Então, vamos aos tipos:

  1. Orientador fantasma: aquele que desaparece, não marca reuniões, não orienta, como se não existisse. Pior, não lê os textos que o orientando já escreveu, não dá nenhum retorno. Trata-se de um tipo muito comum, incluindo até figuras de renome, grandes pesquisadores, e pode até “funcionar” com aqueles estudantes mais autônomos, que até preferem fazer tudo sozinhos. De todo modo, trata-se de um tipo bem nocivo, sobretudo para quem precisa de uma atenção maior para tocar o seu trabalho.
  2. Orientador sanguessuga: até pode parecer um bom orientador, é relativamente presente, incentiva o orientando a produzir (e incluir o seu nome nas publicações), mas sem contribuir com uma linha sequer, nem mesmo com correções. O peso de todo o trabalho fica nas costas do orientando, mas quem leva os louros é esse tal orientador. Aqui cabe, lógico, um adendo: é muito benéfico que o pós-graduando faça trabalhos e publique em parceria com o seu orientador, mas o ideal é que esse trabalho seja feito em parceria mesmo, a quatro mãos.
  3. Orientador messiânico: decreta leis e quer que o orientando o siga cegamente, sem permitir nenhum pensamento divergente, crítico. Esse é um tipo mais agressivo, pois pode até perseguir o próprio orientando, boicotá-lo. O messiânico praticamente define a pesquisa que o orientando deve fazer, sem abrir brecha para que ele busque inovações, tenha leituras diferentes, desqualificando toda e qualquer tentativa de o orientando deixar uma marca própria no trabalho. Pode funcionar bem com pessoas que preferem seguir um plano já demarcado, sem surpresas, mas é nocivo de todo modo por se preocupar mais em preparar um seguidor do que propriamente um pesquisador com pensamento próprio.

Claro que essas são generalizações que pressupõem tipos “puros”, podendo haver hibridismos e gradações de cada um desses comportamentos na vida real. Porém, ser um pouco menos fantasma, ou levemente messiânico, não reduz tanto assim o problema. Um mau orientador faz com que o trabalho académico se torne um peso enorme para o estudante, maior do que ele deveria ser, aumentando a ansiedade, a insegurança e a baixa autoestima e gerando uma tensão no ambiente académico que não deveria existir.

A mudança, para evitar que isso aconteça, não é simples, porque passa por transformações não só individuais, mas também institucionais e na própria cultura da academia, que alimenta egos e um estrelato que só existe, no fim das contas, nas cabeças dos que se sentem acima do bem e do mal (mas que, na verdade, só são servidores públicos como os demais). Contudo, vale aqui uma dica: caso você, orientando, se sinta prejudicado ou insatisfeito com o seu orientador, deve conversar com ele, expor o que sente, procurar, sempre que for o caso, as instâncias superiores (como a direção do curso) e, em último caso, pedir para trocar de orientador. Essa é uma situação extrema, porém pode salvar não apenas trabalhos acadêmicos, mas a saúde física e mental do estudante.

A solidão do doutoramento e o papel da orientação

A pesquisa acadêmica não é necessariamente sinônimo de trabalho individual, mas em um doutorado essa relação costuma ser enfatizada. Primeiro porque poucas vezes (falo especificamente sobre as ciências sociais aplicadas) os doutorandos se integram a projetos de investigação mais amplos, repletos de integrantes. O mais comum é cada um construir o seu próprio projeto e encaminhá-lo individualmente. Segundo, porque nem sempre o contexto permite que os doutorandos de uma determinada turma mantenham o convívio mais próximo. Em geral, depois que as aulas terminam, cada um vai para a sua casa, centro de pesquisa ou biblioteca, e vai tocar sua pesquisa sozinho.

Tocar a pesquisa sozinho implica em uma série de coisas, a começar pela gestão do próprio tempo, afinal, como qualquer pessoa que trabalha em casa, podemos tanto trabalhar dia e noite, como também começar a protelar, protelar até sabe-se lá quando. Também implica uma boa organização, a definição de objetivos que possam ser cumpridos e bom senso na execução das etapas empíricas do estudo. Responsabilidades que podemos associar à de um empreendedor que está à frente de um novo negócio, mas que possui uma “clientela” especial, formada grandes especialistas de sua área, que têm o papel de definir se o seu trabalho é o suficiente para lhe atribuir o título de doutor – ou seja, o certificado de que, agora sim, você faz parte do campo acadêmico.

Para completar, todo esse processo de feitura de uma tese de doutorado é bastante longo, durando mais de 3 anos (o meu já passou de 3 anos e meio), o que contribui enormemente para o surgimento de alguns sintomas bastante negativos e alimentados pela solidão.

Em outro post, dei algumas dicas de como sobreviver ao doutorado, mas senti falta de falar um pouco mais do assunto, pois estou vivendo esse sentimento de solidão há algum tempo. Uma sensação que mistura a satisfação de estar com a pesquisa em fase bem avançada, de ver as páginas que vão formar a tese se sucedendo, de sentir que estou realizando um trabalho bacana, com resultados interessantes, mas ao mesmo tempo não ter com quem falar sobre tudo isso e sentir que, ao me calar, me entristeço, vou me consumindo.

Sentir isso faz todo sentido e em doses mais severas, se torna bastante preocupante, como mostrou uma pesquisa da Universidade de Kentucky (EUA) divulgada em 2018, cerca de 39% dos estudantes de doutorado chegam a apresentar sintomas de depressão, desde leve até severa – enquanto a média na população em geral é de 6%. Outros estudos confirmam a tendência à deterioração da saúde mental dos doutorandos.

Nem tudo é tão solitário assim. Trocamos ideias preciosas sobre os nossos objetos nos eventos acadêmicos, onde, na imensa maioria das vezes, pesquisadores mais experientes são super receptivos e abertos a ouvir e opinar da forma mais construtiva possível. Nos eventos também sempre encontramos outros jovens pesquisadores, com quem podemos partilhar nossos anseios, medos e experiências e, com isso, deixar de nos sentir tão sozinhos e incompreendidos.

Acima de tudo, temos o orientador, ou, como no meu caso, a orientadora. A pessoa que conhece seu trabalho tão bem quanto você, e melhor, pois sabe identificar suas fraquezas e suas potencialidades, e que dá os feedbacks da maneira mais sincera possível para que você possa melhorar o que está fazendo, até entregar uma tese digna do nome.

Entretanto, nem sempre estamos lado a lado com o orientador. Inclusive por isso, muitos doutorandos se sentem um tanto abandonados pela ausência de um contato mais frequente e mais caloroso. O que não é necessariamente papel da orientação. Por conta disso, decidi enumerar aqui alguns dos papeis que devemos esperar, e outros que não devemos, da relação com o orientador:

1 – Ler o que o orientando escreveu, corrigindo tanto questões relacionadas à epistemologia, como à metodologia e até à correção gramatical;

2 – Acompanhar o cronograma de trabalho do orientando, cobrando-o sobre prazos;

3 – Apoiar a participação do orientando em eventos acadêmicos, contribuindo na revisão ou até na confecção (em parceria) de resumos, e também, sempre que necessário, enviando cartas de recomendação;

4 – Participar do planejamento do trabalho do orientando, discutindo prazos, quantidade de trabalho e a pertinência de tudo o que está sendo feito;

5 – Não devemos esperar que o(a) orientador(a) se torne um(a) amigo(a) ou pior, pai/mãe. A relação inclui ter empatia e respeito mútuo, mas não necessariamente intimidade e muito menos atitudes paternalistas. Claro que varia de pessoa para pessoa, e há aquelas com as quais nos identificamos profundamente, fazendo com que a orientação depois se transforme em uma grande amizade. Mas, em geral, trata-se de uma relação de trabalho, devemos sempre lembrar disso;

6 – Não devemos esperar que o(a) orientador(a) faça o trabalho para si, indique todos os textos que deve ler, e defina exatamente toda a metodologia que deverá aplicar. Parte do trabalho do pesquisador-doutorando é construir seu próprio caminho, encontrar novas leituras, possíveis metodologias. O(a) orientador(a) vai evidentemente indicar o que considera essencial, mas a investigação jamais poderá se restringir a isso, devendo ir além. Afinal, com acertos e erros, o trabalho é do doutorando.

Portanto, por mais que o orientador seja impecável, acompanhando tudo de perto e dando todos os retornos possíveis, o trabalho de investigação no doutoramento é na maioria das vezes solitário. Não há como mudar isso. E por isso é tão importante permanecer atento ao bem estar físico e mental, ter tempo para se cuidar, para se divertir, para ter hobbies, e para não ser apenas um doutorando.