Como os jornais estão se canibalizando: uma carta ao jornal O Povo

A frase de Clay Shirky escrita em 2008 choca ainda hoje: “a sociedade não precisa dos jornais. Nós precisamos é do jornalismo”. O trecho integra um artigo em que o autor norte-americano argumenta que o foco da defesa do jornalismo não deveria recair sobre os jornais impressos, que mais cedo ou mais tarde vão sucumbir pelas mudanças geradas pelo ambiente digital. O que deve ser defendido, na opinião dele, é uma prática jornalística que de fato responda às demandas da sociedade, e não fique presa à sua própria existência, como um fim em si, iludida pela falsa ideia de que seu papel é tão importante para a manutenção da democracia que se confunde com a própria democracia.

Claro que os jornais são importantes, claro que eles foram fundamentais para o desenvolvimento das bases da democracia em todo o mundo democrático, mas isso não apaga os equívocos que o setor dos media cometeu, até mesmo em sentido antidemocrático, para defender seus próprios interesses, em diferentes momentos da história. Um desses equívocos foi, durante muito tempo, a principal estratégia de negócios dos jornais: sufocar iniciativas de pequeno e médio porte, por meio do abuso do poder econômico e da influência política, levando-as a fechar e tornando o campo mediático bem mais concentrado e, ao mesmo tempo, menos plural. Agora, como alegam Broersma e Peters (2013, p. 5), “depois de comerem todas as outras espécies, eles (os jornais) canibalizam a si mesmos”.

Saturno devorando a su hijo (1819-1823), obra de Francisco de Goya, retrata o deus Cronos (Saturno, na mitologia romana), que comia seus filhos por temor de ser destronado por um deles. É uma metáfora sobre o passar do tempo. Aplicada ao jornalismo, a metáfora reflete as ações canibalescas que tem sido aplicadas pelos jornais contra os seus próprios jornalistas em resposta às mudanças no ambiente mediático (para se “defenderem” da perda de $$)

Dia após dia, assistimos essa canibalização nos passaralhos que assombram as redações de tempos em tempos e na exclusão de direitos, negados não só a novos trabalhadores, mas também aos antigos, que passam a se sentir cada vez mais descartáveis e desestimulados a produzir algo de qualidade, uma vez que se valoriza mais o número de cliques e likes do que o potencial transformador de uma boa reportagem. O que os jornais esperam com esse tipo de atitude eu não sei exatamente: equilíbrio financeiro? Lucro? Ganhar mais leitores? Posso falar apenas sobre o que tem sido recorrente: a queda nas vendas e nas receitas só tem se acentuado, e isso se dá principalmente porque os jornais preferem abrir mão do seu principal capital simbólico, o bom jornalismo, conquistado a duras penas pelos seus jornalistas. Se olhassem para o lado (dos leitores), esses mesmos jornais perceberiam que descartar o jornalismo e abraçar os fait divers (ou os chamados clickbaits, em tempos de redes sociais) é exatamente o que os torna socialmente irrelevantes e, por isso, desnecessários.

Falar é fácil, podem alegar alguns gestores de mídia impressa, o difícil é colocar em prática soluções de longo prazo que de fato deem segurança financeira aos negócios. Afinal, sem dinheiro, não há jornalismo. De fato, ainda não surgiram soluções definitivas para essa encrenca, mas algumas experiências mundo afora têm demonstrado que uma das saídas passa pelo bom jornalismo. Falo do que acontece com o The Guardian, o El Diario.es (Espanha), o Buzzfeed, projetos empresariais que têm se mantido sustentáveis ao investir em boas reportagens. Tá, no Brasil as pessoas leem menos, têm um menor nível educacional, têm menos dinheiro, então é claro que os jornais vão sofrer mais para sobreviver, principalmente nas cidades mais pobres, como é o caso de Fortaleza (CE). Sim, tudo isso é verdade, mas exemplos como o da Agência Pública também sinalizam que ainda há procura por um bom jornalismo, que defenda o interesse público, fiscalize os poderosos e coloque em evidência problemas sociais, sempre à frente dos interesses privados.

Mas, aí, entram em jogo as tais consultorias, ligadas ao “mercado”, que chegam nas redações e mandam cortar aqui, ali, esmagando as rotinas de trabalho, inviabilizando o crescimento profissional, e agora, mais recentemente, até mesmo cortando direitos conquistados há anos pelos trabalhadores do setor, como se isso fosse normal e aceitável. Como não têm para onde ir, os trabalhadores muitas vezes aceitam calados, afundando seus problemas financeiros e se tornando mais e mais desiludidos com a profissão. O sonho de ser jornalista, que se materializa quando publicamos a primeira matéria de capa num jornal, se transforma em um pesadelo.

Para completar, os trabalhadores que demonstram a insatisfação, buscando defender seu último naco de dignidade, são acossados, assediados, sendo que alguns são tomados como exemplos (e, por isso, demitidos) para mostrar aos outros que sim, é melhor ficarem calados se ainda quiserem manter seu salário cada vez mais miserável. E, olha a ironia, quem são os algozes dos jornais? Os próprios jornalistas, mas aqueles que conquistaram um carguinho de poder, e que, mesmo sendo empregados, deixaram de se enxergar como trabalhadores (será que se sentem empresários?) e, por isso, não veem nada de errado em aceitar cortes de direitos receitadas por figurões do “mercado” que nada têm a ver com o jornalismo.

Tenho vergonha do que está acontecendo no setor, e sobretudo do que o jornal O Povo está fazendo com os seus jornalistas. Falo do jornal O Povo pois atuei ali durante três anos, tenho muitos amigos, ex-alunos, e tenho assistido atônita a piora nas relações trabalhistas que tem sido aplicada de uns tempos para cá. Atitudes semelhantes estão sendo tomadas também pelo seu “concorrente” (que, nesses momentos, atua como parceiro), Diário do Nordeste, mas vou me referir especificamente sobre O Povo, que é o caso que conheço melhor.

Não é de hoje que as condições não são as ideais, mas havia alguns benefícios que compensavam sacrifícios e serviam como complemento relevante para os salários dos repórteres, como as diárias de viagem, o auxílio creche e as bolsas de estudo para os que têm filhos, o adicional para os repórteres que cobriam polícia. Do nada, cortaram alguns desses direitos e ameaçam tirar os outros, alegando falta de acordo com o sindicato dos jornalistas, mas sem levar em conta que os prejudicados nesse impasse são os jornalistas da casa, aqueles que se desdobram para produzir conteúdo multiplataforma, quem dá vida e sentido à empresa.

Como professora de jornalismo, há algum tempo me incomoda pensar que a universidade sempre formou jornalistas para serem empregados dessas empresas de comunicação. Saímos do curso sem saber fazer outra coisa, acreditando que só há vida para um jornalista dentro de uma redação (seja de jornal, TV, rádio). Estudar os media alternativos e a prática do jornalismo alternativo me fez mudar radicalmente de ideia, e hoje penso que devemos formar jornalistas capazes de atuar principalmente por conta própria, em pequenas iniciativas, ou grandes, mas com autonomia, mobilidade e espírito desbravador, para não ficarem à mercê de empresas que não prezam o jornalismo, apenas a sustentabilidade financeira de seus acionistas. As empresas, claro, seguem sendo importantes, dão empregos e asseguram a renda de muitas pessoas, sendo uma verdadeira tragédia que se degringolem do jeito que está acontecendo. Isso, porém, não lhes dá o direito de massacrar ninguém, o que vai, inclusive, contra os princípios da democracia e, consequentemente, do próprio jornalismo. Como um jornalista vai falar sobre justiça social se ele não pode defender sequer os seus próprios direitos? Que jornal pode falar em democracia quando pratica assédio moral para calar a boca de seus próprios trabalhadores? 

Por essa e por outras, não devemos defender os jornais. Precisamos defender o jornalismo, como uma prática essencial para a sociedade democrática. Como o jornalismo é produzido por jornalistas, devemos repudiar todo tipo de ação que corroa a profissão. Certamente não serão os jornais que irão “salvar” o jornalismo, mas sim seus jornalistas. Por isso, lanço aqui meu repúdio ao jornal O Povo e minha solidariedade a todos os colegas que têm sido perseguidos e humilhados pelos executivos desse jornal.

Referências bibliográficas

Broersma, M., & Peters, C. (2013). Rethinking journalism: the structural transformation of a public good. In C. Peters & M. Broersma (Eds.), Rethinking Journalism – Trust and Participation in a Transformed News Landscap (pp. 1–12). London and New York: Routledge.

Shirky, C. (2008). Newspapers and thinking the unthinkable. Retrieved March 29, 2019, from https://www.edge.org/conversation/clay_shirky-newspapers-and-thinking-the-unthinkable