A solidão do doutoramento e o papel da orientação

A pesquisa acadêmica não é necessariamente sinônimo de trabalho individual, mas em um doutorado essa relação costuma ser enfatizada. Primeiro porque poucas vezes (falo especificamente sobre as ciências sociais aplicadas) os doutorandos se integram a projetos de investigação mais amplos, repletos de integrantes. O mais comum é cada um construir o seu próprio projeto e encaminhá-lo individualmente. Segundo, porque nem sempre o contexto permite que os doutorandos de uma determinada turma mantenham o convívio mais próximo. Em geral, depois que as aulas terminam, cada um vai para a sua casa, centro de pesquisa ou biblioteca, e vai tocar sua pesquisa sozinho.

Tocar a pesquisa sozinho implica em uma série de coisas, a começar pela gestão do próprio tempo, afinal, como qualquer pessoa que trabalha em casa, podemos tanto trabalhar dia e noite, como também começar a protelar, protelar até sabe-se lá quando. Também implica uma boa organização, a definição de objetivos que possam ser cumpridos e bom senso na execução das etapas empíricas do estudo. Responsabilidades que podemos associar à de um empreendedor que está à frente de um novo negócio, mas que possui uma “clientela” especial, formada grandes especialistas de sua área, que têm o papel de definir se o seu trabalho é o suficiente para lhe atribuir o título de doutor – ou seja, o certificado de que, agora sim, você faz parte do campo acadêmico.

Para completar, todo esse processo de feitura de uma tese de doutorado é bastante longo, durando mais de 3 anos (o meu já passou de 3 anos e meio), o que contribui enormemente para o surgimento de alguns sintomas bastante negativos e alimentados pela solidão.

Em outro post, dei algumas dicas de como sobreviver ao doutorado, mas senti falta de falar um pouco mais do assunto, pois estou vivendo esse sentimento de solidão há algum tempo. Uma sensação que mistura a satisfação de estar com a pesquisa em fase bem avançada, de ver as páginas que vão formar a tese se sucedendo, de sentir que estou realizando um trabalho bacana, com resultados interessantes, mas ao mesmo tempo não ter com quem falar sobre tudo isso e sentir que, ao me calar, me entristeço, vou me consumindo.

Sentir isso faz todo sentido e em doses mais severas, se torna bastante preocupante, como mostrou uma pesquisa da Universidade de Kentucky (EUA) divulgada em 2018, cerca de 39% dos estudantes de doutorado chegam a apresentar sintomas de depressão, desde leve até severa – enquanto a média na população em geral é de 6%. Outros estudos confirmam a tendência à deterioração da saúde mental dos doutorandos.

Nem tudo é tão solitário assim. Trocamos ideias preciosas sobre os nossos objetos nos eventos acadêmicos, onde, na imensa maioria das vezes, pesquisadores mais experientes são super receptivos e abertos a ouvir e opinar da forma mais construtiva possível. Nos eventos também sempre encontramos outros jovens pesquisadores, com quem podemos partilhar nossos anseios, medos e experiências e, com isso, deixar de nos sentir tão sozinhos e incompreendidos.

Acima de tudo, temos o orientador, ou, como no meu caso, a orientadora. A pessoa que conhece seu trabalho tão bem quanto você, e melhor, pois sabe identificar suas fraquezas e suas potencialidades, e que dá os feedbacks da maneira mais sincera possível para que você possa melhorar o que está fazendo, até entregar uma tese digna do nome.

Entretanto, nem sempre estamos lado a lado com o orientador. Inclusive por isso, muitos doutorandos se sentem um tanto abandonados pela ausência de um contato mais frequente e mais caloroso. O que não é necessariamente papel da orientação. Por conta disso, decidi enumerar aqui alguns dos papeis que devemos esperar, e outros que não devemos, da relação com o orientador:

1 – Ler o que o orientando escreveu, corrigindo tanto questões relacionadas à epistemologia, como à metodologia e até à correção gramatical;

2 – Acompanhar o cronograma de trabalho do orientando, cobrando-o sobre prazos;

3 – Apoiar a participação do orientando em eventos acadêmicos, contribuindo na revisão ou até na confecção (em parceria) de resumos, e também, sempre que necessário, enviando cartas de recomendação;

4 – Participar do planejamento do trabalho do orientando, discutindo prazos, quantidade de trabalho e a pertinência de tudo o que está sendo feito;

5 – Não devemos esperar que o(a) orientador(a) se torne um(a) amigo(a) ou pior, pai/mãe. A relação inclui ter empatia e respeito mútuo, mas não necessariamente intimidade e muito menos atitudes paternalistas. Claro que varia de pessoa para pessoa, e há aquelas com as quais nos identificamos profundamente, fazendo com que a orientação depois se transforme em uma grande amizade. Mas, em geral, trata-se de uma relação de trabalho, devemos sempre lembrar disso;

6 – Não devemos esperar que o(a) orientador(a) faça o trabalho para si, indique todos os textos que deve ler, e defina exatamente toda a metodologia que deverá aplicar. Parte do trabalho do pesquisador-doutorando é construir seu próprio caminho, encontrar novas leituras, possíveis metodologias. O(a) orientador(a) vai evidentemente indicar o que considera essencial, mas a investigação jamais poderá se restringir a isso, devendo ir além. Afinal, com acertos e erros, o trabalho é do doutorando.

Portanto, por mais que o orientador seja impecável, acompanhando tudo de perto e dando todos os retornos possíveis, o trabalho de investigação no doutoramento é na maioria das vezes solitário. Não há como mudar isso. E por isso é tão importante permanecer atento ao bem estar físico e mental, ter tempo para se cuidar, para se divertir, para ter hobbies, e para não ser apenas um doutorando.

Cinco dicas para sobreviver a um doutorado

Quem passa por um mestrado já sabe o sofrimento que é se debruçar por dois anos sobre um mesmo objeto, dissecando-o, problematizando-o e sempre, infinitamente, encontrando novas referências que podem mudar totalmente a abordagem que você está fazendo sobre aquele objeto. No doutorado, esse sofrimento é multiplicado por dois, pois são quatro anos e a exigência de produzir algo de excelência é muito maior. Muitas vezes sentimos que se trata da obra da nossa vida, e isso é sério demais, aumentando muito a cobrança que fazemos sobre nós mesmos.

E daí que não é nada incomum que muitas pessoas, durante o doutorado, acabem iniciando, ou piorando, processos depressivos, ansiedade, pânico. Há quem se divorcie, ou decida abandonar tudo e mudar totalmente o tema, e muitos desenvolvem problemas de saúde que depois se tornam crônicos, como hipertensão. Até a quantidade de fios brancos na cabeça e de rugas pelo rosto se alastra – não, isso é só culpa da idade mesmo.

Enfim, trata-se de um período muito solitário, já que desenvolvemos esse grande projeto sozinhos – por mais que o ou a orientadora esteja presente. O cotidiano é solitário e nem sempre temos com quem conversar sobre o nosso trabalho, para falar das descobertas, dos impasses, dos desafios. E, ainda por cima, temos de gerir nosso tempo de leitura, de escrita, de trabalho empírico, os eventos académicos que vão surgindo, o aprendizado de línguas, de softwares de apoia à pesquisa, manter a leitura em dia, e ainda acompanhar a realidade do nosso país, do mundo. E ainda ser mãe, esposa, filha, cuidar da casa, da roupa, da própria saúde…

Para não surtar, venho desenvolvendo algumas atividades que acabam me fazendo bem e que tem me ajudado a não me sentir tão cansada com o doutorado. Fiz uma lista e vou compartilhar, com a ideia de quem sabe servir de apoio para outras pessoas que estão no mesmo barco. Vamos lá.

  1. Arranjar um hobbie, em especial se for um trabalho manual. Algo que dê prazer, que ocupe de algum modo seu tempo livre, para que não fique só na frente do computador com raiva do que vê no Facebook. Eu comecei a fazer bordados e depois voltei para o crochê. Faço quando estou com a cabeça pesada de tanto pensar. Melhor coisa do mundo.IMG_20180925_163101
  2. Não deixar de fazer exercícios físicos. Parece clichê, mas não é: a cabeça pensa muito melhor quando o nosso corpo está bem. Não precisa virar um atleta de competição. Mas não dá pra ficar parado. Eu comecei a frequentar uma academia (ginásio, em Portugal), mas ainda assim me custava, eu não gostava de ir. Agora me encontrei no pilates e na yoga. Conto os dias para ir lá me esticar um pouco. O importante é fazer algo para deixar o corpo em movimento, e mais ainda se gostar, mantendo uma rotina.
  3. Ler literatura, e não só textos acadêmicos. No doutorado, lemos sem parar, não só quando estamos fazendo uma revisão de literatura. É o tempo todo. E cansa. Você começa a ser até mais pragmático, lê o resumo, as conclusões e de alguns textos vai ler o miolo, para encontrar algo que pode ser muito útil. Esse tipo de leitura não dá prazer, é funcional. Mas ler é muito prazeroso, e não podemos esquecer disso. Não me tornei uma máquina de leitura, mas quase todas as noites, na hora de dormir, leio um pouco, e nisso já li alguns livros fantásticos ao longo do meu doutorado. Vale demais a pena.
  4. Reservar ao menos um dia da semana para não fazer nada. Bem, eu não diria não fazer nada, exatamente, porque quem tem filhos como eu sabe que isso é quase impossível. Mas é sair, aproveitar o dia de sol, ir ver os amigos, sem pressa e sem aquela pressão de ter que estar trabalhando. É seu dia de folga, mais do que merecido.
  5. Escrever um blog para desabafar sobre a tese. Esse foi o meu caminho para suprir a falta de ter com quem conversar mais longamente sobre o que eu estava fazendo. Pode ser um diário pessoal também, que ninguém leia, mas estabelecer algum nível de diálogo, mesmo que seja consigo mesma, é de certo modo acalentador e nos ajuda a refletir sobre o próprio processo de construção da tese.

Fora tudo isso, recomendo que se escreva a tese desde sempre (já falei um pouco sobre a escrita acadêmica num texto anterior). Mesmo que não seja um texto acabado, pronto para ser o texto final da tese, sentir que estamos escrevendo já nos dá confiança de que tudo vai terminar bem. E ter sempre a certeza de que este não é “o” trabalho da sua vida. É um dos primeiros como acadêmico. Então, vai ser imperfeito, incompleto, passível de receber críticas. Mas vai ser um trabalho respeitável, relevante, que vai trazer contribuições para o campo acadêmico e, quem sabe, para a sociedade. Nem que seja uma contribuição pequenina, mas estará lá. Manter a autoconfiança e a autoestima é ultranecessário em qualquer trabalho, ainda mais ao desenvolver um projeto tão grande como é uma tese.