Escola sem Partido coisa nenhuma… Produzir conhecimento é uma ação política!

Depois que conheci a Análise do Discurso (sobretudo Charaudeau e van Dijk, inicialmente) e Stuart Hall, passei a ter como pressuposto de vida a ideia de que não existe neutralidade. Nem mesmo as bulas de remédio são neutras, quanto mais matérias jornalísticas e pesquisas acadêmicas. Quem produz discurso sempre se posiciona, nem que seja ao dizer que não se posiciona, e que é neutro e objetivo. Ou afirmando em letras garrafais que não tem ideologia e que vai combater as “ideologias nefastas”. Como o cimento que cola os tijolos de uma casa, a ideologia – seja ela hegemônica, não-hegemônica ou até contra-hegemônica – está sempre ali presente em cada pensamento que produzimos, e não pode ser simplesmente descartada. No máximo podemos identificá-la, tomar “consciência” de sua existência, como dizia Gramsci, e a partir daí procurar refletir sobre ela e, se for o caso, se reposicionar, se contrapor, ou até mesmo assumir essa ideologia, em uma decisão que nunca é plenamente racional, e que passa por nossos sentimentos, conflitos pessoais, interações, enfim, por todas as mediações que nos fazem ser quem somos.

Por mais que para mim essa questão esteja mais do que esclarecida (é impossível ser neutro e pronto!), a negação da possibilidade de se posicionar ainda está a plenos vapores quando se trata da produção e difusão do conhecimento, o que inclui a escola (e a universidade) e o jornalismo. Projetos como o da Escola sem Partido partem dessa ideologia positivista que defende a objetividade como algo possível, necessário e alcançável, bastando para isso que o professor em sala de aula se abstenha de falar suas próprias opiniões e se atenha aos fatos. O que omite o pressuposto de que os fatos a serem relatados foram escolhidos entre inúmeros outros, e a própria forma como o relato é feito pressupõe um viés, que beneficia um lado e prejudica ou até invisibiliza outro (afinal, Portugal descobriu o Brasil ou invadiu o território, que já era ocupado por uma vasta população indígena à época? A ação dos EUA na Síria é um ato de combate ao terrorismo ou uma série de crimes humanitários?). Vieses que existem em todas as disciplinas e que definem o que se deve aprender.

A defesa da neutralidade, no fim das contas, contribui para o desconhecimento, para a falta de reflexão, limitando o aprendizado, e não o inverso, como os ideólogos dessa política querem fazer crer. E não importa o quanto se discuta, os argumentos rasos nem tentam ser razoáveis, basta “extirpar Paulo Freire” das salas de aula, combater o “marxismo cultural”, impedir que professores falem de “feminismo” e outras ideologias nefastas, e retomar as escolas de antigamente, que essas sim eram boas. Tá… E se fizermos exatamente o contrário dessa receita? E se incentivarmos cada vez mais a produção e a difusão de conhecimento engajados em causas sociais?

Pois é, nem só de Escola sem Partido e objetividade vive o mundo. A necessidade de assumir posicionamentos e de produzir uma ciência engajada tem sido amplamente discutida nos meios acadêmicos (pelo menos nas ciências sociais). Mais do que isso, discute-se a necessidade de a ciência deixar seus gabinetes e passar a se envolver diretamente em determinadas lutas, para efetivamente contribuir para gerar transformações sociais.

Trago três exemplos de discussões que vi recentemente em eventos acadêmicos que aconteceram no final do ano passado. O primeiro deles no Congresso da Ecrea, com a fala de uma das congressistas principais, Lina Dencik, que defendeu a necessidade de estabelecer estratégias de resistência na sociedade datatificada para se buscar justiça social no acesso aos dados. Fala que levou em conta o quanto estamos nas mãos de meia dúzia de empresas de tecnologia, que têm como principais ativos os nossos dados, nossas informações, que utilizam a seu béu prazer, lucrando bastante, para gerar mais dependência, mais lucro, e, como o caso da Cambridge Analytica demonstrou, para nos manipular deliberadamente com fins políticos. Para Dencik, os acadêmicos precisam deixar de se contentar em simplesmente estudar os dados fornecidos por essas empresas, como se fossem neutros, e ter postura crítica em relação a essas elas, ainda que isso signifique não ter acesso a todos os dados e sobretudo financiamentos que elas mesmas liberam para a pesquisa. Postura crítica que pode significar, então, não ter dinheiro para pesquisar, mas ter independência.

Em um painel sobre comunicação política também no Congresso da Ecrea, Natalie Fenton falou sobre um novo projeto que desenvolve na Inglaterra com comunidades vulneráveis, buscando compreender o que as pessoas pensam sobre o futuro, e o que podem fazer para ter mais esperança. Projeto motivado pela percepção de que as desigualdades sociais estão cada vez mais profundas, com uma fenda enorme entre os detentores do poder e os pobres, que são levados a não sonhar, a não ter perspetivas sobre para onde vão, sobre como podem ter um mundo melhor, o que gera um enorme vazio e descrença com relação a todas as instituições, ao governo, aos partidos (alguma semelhança com o Brasil não é mera coincidência). Fenton considera que a esquerda também contribuiu para difundir esse sentimento, ao não apresentar propostas alternativas e se distanciar das bases. No entanto, ela não rejeita o projeto político da esquerda, e sim propõe que este seja reformulado, com uma mudança no pensamento socialista que promova as liberdades, e que alimente um pensamento utópico anti-nostalgia, a partir de uma ação participativa que de fato leve em conta o que as pessoas pensam, e não o que os pesquisadores e os políticos acham que elas pensam. Uma ação liderada pelos próprios cidadãos “comuns” e que contribua para levá-los não apenas de volta ao trabalho, mas à política como algo essencial e transformador de suas vidas.

Por último, cito a fala de uma outra pesquisadora (não é à toa que são todas mulheres!), Charlotte Ryan, dos Estados Unidos (esta eu escutei em um congresso especificamente sobre ativismo, Mediaflows, também no final do ano passado). Ryan é reconhecida pesquisadora na área do “framing”, mas ultimamente tem se dedicado a estudar estratégias midiáticas na organização de movimentos comunitários, e defende que a produção de conhecimento não pode estar dissociada da atuação política. Por isso, ela participa ativamente de movimentos sociais enquanto investiga suas práticas, e argumenta que, desta forma, a pesquisa acaba sendo coletiva, pois os ativistas são coprodutores ativos do conhecimento ali produzido.

Conferência de Charlotte Ryan no Congresso Mediaflows, em Valência (novembro de 2018).
Conferência de Charlotte Ryan (à direita) no Congresso Mediaflows (novembro/2018)

Como o objetivo deixa de ser meramente publicar em determinadas revistas “referees” e passa a ser contribuir para gerar transformações sociais, Ryan defende que a produção acadêmica precisa ser clara e compreensível para os ativistas e as comunidades em geral, tendo de adotar uma linguagem mais acessível, e que tudo o que for produzido seja sempre compartilhado com essas organizações, para que seus integrantes possam discutir os resultados e refletir sobre suas próprias práticas, de modo a aprimorá-las.

O problema, nos três exemplos, começa dentro do próprio campo acadêmico, que prioriza números, a tal objetividade e publicações em revistas de renome. Além de valorizar cada vez mais a aproximação com um certo mercado, que financia pesquisas para obviamente se beneficiar, não importando se elas prejudicam a população. Ou se uma parte muito volumosa da população deixa de ser objeto de estudos, porque, afinal, não está entre os detentores do poder, e por isso não interessa. Mas esses constrangimentos não podem nos paralisar. Produzir conhecimento que leve a melhorias de vida, sobretudo dos grupos sociais que mais sofrem injustiças sociais, não pode ser visto como algo secundário. Deve ser o objetivo principal de qualquer pesquisa, de qualquer área de atuação. E, sob essa ética, uma das obrigações do pesquisador, do professor e do jornalista é encontrar maneiras de superar as limitações e, assim, alcançar seus objetivos. Com a máxima transparência, ao indicar seus posicionamentos, seu ponto de partida, e seus objetivos, e com a máxima abertura para ouvir e incorporar a participação das pessoas mais diversas e plurais possíveis. Afinal, produzir e difundir conhecimento, querendo ou não, é sim uma ação política.

Encontros à portuguesa

Há dois anos e meio, eu, meu marido e dois filhos cruzamos o Atlântico em direção a um mundo desconhecido, mas ao mesmo tempo tão desejado. Viver em Portugal, afinal, é sonho de muitos, um país irmão com o qual partilhamos a mesma língua e parte da história. Os sustos pelo choque cultural foram inevitáveis, mas logo foram superados por boas surpresas, que vieram no formato de encontros e se tornaram a parte mais encantadora de toda essa jornada.

Compartilho aqui texto que escrevi para a Revista do Dragão v.2, n.2, publicada este ano. Como a versão digital ficou incompleta (e sem o meu texto), decidi disponibilizar minha crônica, que afinal não tem muito a ver com o doutorado, mas ao mesmo tem tudo a ver. Pois tem a ver com as vivências que viver no exterior nos reserva. Aqui vai.

 

Os personagens que apareciam na TV eram os de sempre. Gumball, Darwin, Mordecai, Rigby. Mas o que eles diziam…

– Mãe, ajeita a TV, tá em inglês, não dá pra entender nada.

– Filho, isso não é inglês, é português. Presta a atenção que logo você vai entender tudo.

Isso já aconteceu há dois anos e meio, em outubro de 2015, quando nos mudamos de mala e cuia para o Norte de Portugal, em Braga, para passar uma temporada de quatro anos, o tempo de iniciar e terminar um doutorado – e mais um bocado de coisas.

Lá no fundo da minha alma, eu tinha que admitir, naquele primeiro momento eu também não entendia muitas das expressões que ouvia. Seja na televisão, seja nas ruas. E não só pelo sotaque. Tive uma avó nascida na Madeira que nunca mudou o jeito de falar. Mas não, não era isso. Eram os termos usados. Ainda mais em desenhos animados repletos de gírias e informalidades. “Vá lá, chavalos”, “… que tal ver a malta a passar?”. É, tava difícil de decifrar.

As diferenças, contudo, não param por aí. Até o jeito das pessoas é outro. Meu pequeno, com quatro anos, chega em casa logo nos primeiros dias de escola relatando que um coleguinha, da mesma idade, o estrangulou. Mostrou com as mãozinhas, e com jeito aflito. Fiquei desesperada. Fui à escola, reclamei com a professora. Logo depois, porém, percebi que era o jeito das crianças. Elas adoram abraçar, e fazem isso às vezes com força. Nem eu nem meu filho estávamos acostumados com aquilo. Logo o “estrangulador” se tornou o melhor amigo.

E, se de um lado, adoram dar abraços e distribuir beijinhos, por outro, os portugueses não se acanham ao dar uma boa bronca. Não foi uma nem duas que levei sermão em repartições públicas por algum erro que cometi. Por não saber preencher um envelope corretamente, ao esquecer (ou não saber que precisava de) um documento. A bronca vem sem pena. Mas logo depois de ouvir resignada e pedir mil desculpas pela falha, vem o afago e a tentativa de remediar o problema. “Vamos fazer o preenchimento do envelope deste jeito…”, “me mande o documento que falta por email ainda hoje que incluo no restante da papelada”. Vários jeitinhos que, no fim, tem tudo a ver com o nosso jeitinho brasileiro.

Situada no Norte deste pequeno país, Braga é a antiga capital do Império Romano na Península Ibérica, a Bracara Augusta, há mais de dois mil anos, e é marcada pela cultura minhota, da fronteira entre Portugal e a Galícia espanhola. Por isso mesmo, não é incomum que as pessoas usem o B no lugar do V em diversas palavras, o que ficou consagrado até nuns tradicionais lencinhos bordados, que trazem versos de amor e de saudade.

Uma cidade tão antiga, que preserva tradições tão longínquas, mas que ao mesmo tempo possui um espírito universitário tão jovem. A Universidade do Minho, onde faço o doutorado, tem pouco mais de 40 anos, mas já se tornou uma das mais importantes do país e sempre uma ótima referência por onde passo na Europa.

Viver no Norte não é como viver em Lisboa, onde de tanta gente, de tanto agito, ninguém mais presta muita a atenção aos outros. De repente, ao andar em Braga, percebemos que estamos sendo observados. “Olha, acho que seu marido passou há pouco de carro. Ele até fez sinal para si, mas não o viste”. O aviso veio da dona de uma loja de móveis por onde sempre passo para ir à minha casa, mas com quem eu nunca havia trocado sequer uma palavra.

Outro dia, durante uma crise de tosse do pequeno, eis que toca a campainha. Quando isso acontece, nunca sabemos se é alguém no interfone ou se a pessoa já está na porta de casa, pois é comum que vendedores consigam entrar e fazer essa abordagem mais direta. Fábio abre a porta e eis que é a vizinha, com um vidro cheio de mel. “É para o miúdo, é mel da aldeia, muito bom para essas constipações”. E assim descobrimos que tínhamos ali ao lado quase uma avó preocupada com o neto.

Estar num país estrangeiro como imigrante é muito diferente de ser turista. Dá tempo suficiente de perceber as imensas diferenças culturais que existem, mesmo que a história, a língua e a alimentação nos unam muito mais do que nos separem. Sim, a alimentação. É puro mito aquela velha história de que não tem feijão nem café em Portugal. E no Norte, para quem saiu do Nordeste, há diversos outros pontos de contato: galinha à cabidela (chamada de pica no chão), moela, sarrabulho. A aparência é diferente, mas o conceito do prato e os ingredientes são bem parecidos.

Entre as diferenças, está um certo distanciamento, mesclado a talvez uma desconfiança, que os olhares te lançam no início. Mas logo percebe-se que essa desconfiança dura pouco. Quando começamos a frequentar com alguma regularidade diferentes espaços, seja a universidade, a academia de ginástica, a escola dos filhos, ou mesmo repartições públicas, como as finanças, o centro de saúde e o serviço de imigração, as pessoas passam a se aproximar e a demonstrar curiosidade e afeto.

Um afeto que se exprime em conversas intermináveis, em que se fala de um tudo. Da pena que dá de ver o Brasil viver a situação política e econômica que está vivendo, das dificuldades que ainda persistem em Portugal mesmo depois de abandonar parcialmente a “austeridade”, de como o ensino tem sido desafiado pelas novas tecnologias sempre à mão dos nossos filhos. Ou sobre o jeito certo de preparar rojões (carne de porco picada e cozida) para que fiquem bem macios.

Essas conversas despretensiosas, que abrem pequenas frestas ou às vezes janelas para conhecer melhor o outro, são a maior riqueza desta experiência de vida no estrangeiro. Aos pouquinhos, esses encontros vão nos confirmando que, por mais diferenças que existam, há tantas semelhanças. Sim, o estereótipo de que o português é um povo mais formal do que nós brasileiros se confirma em muitos momentos, mas isso não impede a aproximação. E quando a primeira barreira se quebra, temos a chance de conviver com pessoas com um senso de humor muito peculiar, repleto de ironias e que não preserva nem a si mesmos.

Uma das maiores descobertas desse humor é que praticamente todo português consegue imitar bem o sotaque brasileiro. Até quem nunca pisou do outro lado do Atlântico. Conheci um gaiato (este também é um termo português) que eu jurava ser mineiro lás das brenhas, fazendo comentários sem graça sobre apresentações acadêmicas que assistíamos. Pois bem, o gaiato em questão, “mineiro puro-sangue”, na verdade era do Porto, ali também no Norte de Portugal, e por sinal consegue fazer não só o sotaque mineiro, mas o paulista, o carioca, o baiano. E nós, brasileiros, que não conseguimos nem distinguir, a um primeiro momento, o sotaque de Lisboa da fala do pessoal do Norte, acreditamos piamente que somos fantásticos ao imitar os portugueses.

Encontros acontecem e são repletos de novas histórias, de novas nuances, que vão nos abrindo um pouco este mundo tão familiar, mas ao mesmo tempo tão desconhecido. Mas amizades, daquelas de trocar confidências, de frequentar a casa sem avisar antes, de ligar já na balada para saber “cadê tu?”, essas são mais difíceis. Vejo minha filha mais velha lutando ainda, depois de todo esse tempo, para construir um núcleo de amigos, e não é fácil. Você vai contando nos dedos de uma mão, porque prevalecem as relações mais antigas, de infância mesmo, e quem é de fora chega com tudo já estruturado. Mas certamente isso também é questão de mais tempo, para ir furando aos pouquinhos as camadas de timidez que servem como pequenos obstáculos a serem vencidos. Temos mais um ano e meio para descobrir se é assim mesmo.

 

Pra quem não conhece, aqui estão Gumball & família, pelas mãos do Benício

Quando a forma se sobrepõe ao conteúdo, ou sobre o discurso performativo do jornalismo

Eu realmente não queria que fosse assim, mas o percurso da feitura da minha tese tem me colocado repetidamente uma mesma questão, sobre o que é o jornalismo e como diferenciá-lo de outras práticas. Ao ponto de eu poder afirmar com todas as letras que existe um jornalismo alternativo.

Parece uma pergunta simples, mas quando mergulhamos nela, vai ficando mais e mais complexa. Mas luto para que continue sendo uma questão simples. Sim, o jornalismo é uma profissão, é um campo profissional, é uma instituição, é uma identidade, é uma ideologia. E é uma prática. Associada à intenção de informar, o que significa relatar acontecimentos relacionados a uma realidade verificável, e que potencialmente merece ter o interesse público.

Mas o jornalismo é mais do que isso. Conseguimos reconhecer uma notícia, um telejornal, uma entrevista, assim que nos deparamos com uma. E valorizamos o “bom jornalismo”, contra o “sensacionalismo, o mau jornalismo”, chegando a descartar algumas produções, e adorar outras. Fazemos isso de um jeito intuitivo, talvez sem refletir tanto, mas fazemos. E nos decepcionamos quando aquele jornalista que amamos dá uma bola fora, erra, dá uma “barrigada”.

Pesquisador importantíssimo da Análise do Discurso, Patrick Charaudeau publicou há alguns anos um livro intitulado o Discurso das Mídias, em que descreve as estratégias discursivas aplicadas pelos meios de comunicação, com seus mais diversos gêneros e formatos. No caso do discurso jornalístico, este emprega estratégias de validação para criar efeitos de verdade – já que é impossível chegar à verdade pura, uma vez que os fatos são apenas relatáveis, jamais reproduzíveis. Para alcançar o tal efeito de verdade, o jornalismo criou regras, valores e formatos que induzem a uma produção artificialmente impessoalizada, que sempre remete a declarações de outrem (por discurso direto ou indireto) para apresentar os fatos, cria critérios de seleção e hierarquização das notícias, inclui diferentes pontos de vista sobre o relato (pelo menos os dois lados), sem deixar claro o seu posicionamento, afinal precisa ser imparcial e equilibrado. A tal objetividade jornalística, que já tratei por aqui em outro post.

Todas essas regras acabam por ser inseridas em um contrato de comunicação, como definido por Charaudeau, em que tanto o produtor como o receptor (leitor/espectador/usuário) estabelecem um pacto pautado em certos critérios do que se deve esperar do comportamento de um e do outro, com relação ao conteúdo difundido e o consumo. Tudo isso de modo implícito. Assim, se um jornal diz que faz um jornalismo objetivo, imparcial, neutro, o receptor também vai esperar isso, e o vai cobrar desse posicionamento. O que, em tese, faria com que qualquer mudança na postura de um lado ou do outro se torne muito difícil, já que poderia levar ao rompimento desse contrato.

Com o aprofundamento da crise do jornalismo (com jornais que fecham, redução dos empregos nas redações, planos de negócios cada vez mais incertos), claro que toda essa história de contrato também pode ser colocada em xeque e tem muita gente tentando experimentar, criando hibridizações que geram conteúdos bem diversificados. Podemos incluir entre essas hibridizações tanto os produtos de infoentretenimento (que unem jornalismo com o humor, por exemplo), como os de jornalismo de dados (que aproximam jornalismo com o hacker-ativismo), e também o jornalismo alternativo (que alia, em maior ou menor grau, a prática jornalística com o ativismo social).

A “autenticidade” do jornalismo, contudo, continua a ser cobrada por muitos leitores, que muitas vezes rejeitam um jornalismo engajado em causas sociais, que não quer ser imparcial nem neutro, e que defende abertamente um determinado posicionamento. E isso se dá por um motivo muito claro: porque isso significa uma quebra do contrato de comunicação, uma quebra da performance hegemônica do jornalismo. Tomo aqui o conceito de performance a partir do que conceitua Marcel Broersma, que tem desenvolvido uma produção sobre o jornalismo em que entende que a face do jornalismo não é moldada tão somente pelo conteúdo que dissemina, como um discurso descritivo, mas sim por se efetivar como um discurso performativo, desenhado para persuadir os leitores de que o que diz é a descrição do real, o que faz ao transformar uma interpretação em verdade. E as pessoas querem que isso se mantenha.

No meio disso tudo, vemos a multiplicação de um fenômeno que sempre existiu, mas que ganhou um nome popular: fake news (sobre o que já falamos por aqui também). Forjadas em linguagem jornalística, difundidas em sites similares aos jornalísticos, estruturadas a partir de estratégias que remetem a uma tentativa de validação, com uso de provas de que aquele acontecimento realmente existiu, como fotos, declarações, documentos. Ainda que sejam todos falsos, não importa o conteúdo. A forma, a performance, é idêntica à do jornalismo tradicional, e isso é o que vale.

Broersma considera que, ainda que os críticos da objetividade jornalística tenham razão, e esse seja um conjunto de valores jamais alcançável na prática, o jornalismo não poderia simplesmente admitir suas limitações, assumir com transparência que não apresenta a verdade absoluta, mas sim versões dessa verdade, e sair incólume. A performance, ou seja, a forma colocada em prática para que acreditemos que de uma boa prática jornalística pode e é alcançada por meios de comunicação comprometidos, sérios e profissionais, é possivelmente a principal chave de sobrevivência do jornalismo, ainda nos dias de hoje, segundo Broersma. Contudo, o autor não colocou em perspectiva se essa também não seria a mesma chave usada pelos que disseminam as tais fake news, que, travestidos de bom jornalismo, se apresentam os únicos que dizem a verdade, contra toda uma mídia “vendida” e dependente dos poderosos.

O mesmo Broersma admite, entretanto, como única saída que parece estar sendo viabilizada, a maior difusão do que chama de jornalismo partidarizado (e eu chamo de jornalismo alternativo), um jornalismo que admite ter um lado, que não esconde sua parcialidade e que, com isso, evidencia que traz à tona uma determinada versão do fato relatado (que considera “o” lado verdadeiro, claro, mas uma versão entre outras possíveis). Ainda assim, o autor enxerga limitações nessa prática, pela resistência de um público que por um lado é cada vez mais fragmentado, mas que também segue preso a certas crenças. Concordo com essa visão, o jornalismo alternativo não vai ser o salvador de tudo, nem “regenerar o jornalismo”, como também já foi cogitado. Mas considero que assumir, com transparência, limitações e pontos de vista no jornalismo de modo geral pode ser sim um caminho promissor para resguardar a prática das iniciativas mal-intencionadas. Assumir posicionamentos, mas mantendo o compromisso em expor acontecimentos pautados na realidade possível de ser verificada, confirmada. Isso sim pode se tornar o maior pilar do jornalismo.

Referências que usei no texto:

Broersma, Marcel (2010). The unbearable limitations of journalism. On press critique and journalism’s claim to truth. The International Communication Gazette, v. 72 (1), pp. 21-33.

Charaudeau, Patrick (2006). São Paulo: Editora Contexto.

Cinco dicas para sobreviver a um doutorado

Quem passa por um mestrado já sabe o sofrimento que é se debruçar por dois anos sobre um mesmo objeto, dissecando-o, problematizando-o e sempre, infinitamente, encontrando novas referências que podem mudar totalmente a abordagem que você está fazendo sobre aquele objeto. No doutorado, esse sofrimento é multiplicado por dois, pois são quatro anos e a exigência de produzir algo de excelência é muito maior. Muitas vezes sentimos que se trata da obra da nossa vida, e isso é sério demais, aumentando muito a cobrança que fazemos sobre nós mesmos.

E daí que não é nada incomum que muitas pessoas, durante o doutorado, acabem iniciando, ou piorando, processos depressivos, ansiedade, pânico. Há quem se divorcie, ou decida abandonar tudo e mudar totalmente o tema, e muitos desenvolvem problemas de saúde que depois se tornam crônicos, como hipertensão. Até a quantidade de fios brancos na cabeça e de rugas pelo rosto se alastra – não, isso é só culpa da idade mesmo.

Enfim, trata-se de um período muito solitário, já que desenvolvemos esse grande projeto sozinhos – por mais que o ou a orientadora esteja presente. O cotidiano é solitário e nem sempre temos com quem conversar sobre o nosso trabalho, para falar das descobertas, dos impasses, dos desafios. E, ainda por cima, temos de gerir nosso tempo de leitura, de escrita, de trabalho empírico, os eventos académicos que vão surgindo, o aprendizado de línguas, de softwares de apoia à pesquisa, manter a leitura em dia, e ainda acompanhar a realidade do nosso país, do mundo. E ainda ser mãe, esposa, filha, cuidar da casa, da roupa, da própria saúde…

Para não surtar, venho desenvolvendo algumas atividades que acabam me fazendo bem e que tem me ajudado a não me sentir tão cansada com o doutorado. Fiz uma lista e vou compartilhar, com a ideia de quem sabe servir de apoio para outras pessoas que estão no mesmo barco. Vamos lá.

  1. Arranjar um hobbie, em especial se for um trabalho manual. Algo que dê prazer, que ocupe de algum modo seu tempo livre, para que não fique só na frente do computador com raiva do que vê no Facebook. Eu comecei a fazer bordados e depois voltei para o crochê. Faço quando estou com a cabeça pesada de tanto pensar. Melhor coisa do mundo.IMG_20180925_163101
  2. Não deixar de fazer exercícios físicos. Parece clichê, mas não é: a cabeça pensa muito melhor quando o nosso corpo está bem. Não precisa virar um atleta de competição. Mas não dá pra ficar parado. Eu comecei a frequentar uma academia (ginásio, em Portugal), mas ainda assim me custava, eu não gostava de ir. Agora me encontrei no pilates e na yoga. Conto os dias para ir lá me esticar um pouco. O importante é fazer algo para deixar o corpo em movimento, e mais ainda se gostar, mantendo uma rotina.
  3. Ler literatura, e não só textos acadêmicos. No doutorado, lemos sem parar, não só quando estamos fazendo uma revisão de literatura. É o tempo todo. E cansa. Você começa a ser até mais pragmático, lê o resumo, as conclusões e de alguns textos vai ler o miolo, para encontrar algo que pode ser muito útil. Esse tipo de leitura não dá prazer, é funcional. Mas ler é muito prazeroso, e não podemos esquecer disso. Não me tornei uma máquina de leitura, mas quase todas as noites, na hora de dormir, leio um pouco, e nisso já li alguns livros fantásticos ao longo do meu doutorado. Vale demais a pena.
  4. Reservar ao menos um dia da semana para não fazer nada. Bem, eu não diria não fazer nada, exatamente, porque quem tem filhos como eu sabe que isso é quase impossível. Mas é sair, aproveitar o dia de sol, ir ver os amigos, sem pressa e sem aquela pressão de ter que estar trabalhando. É seu dia de folga, mais do que merecido.
  5. Escrever um blog para desabafar sobre a tese. Esse foi o meu caminho para suprir a falta de ter com quem conversar mais longamente sobre o que eu estava fazendo. Pode ser um diário pessoal também, que ninguém leia, mas estabelecer algum nível de diálogo, mesmo que seja consigo mesma, é de certo modo acalentador e nos ajuda a refletir sobre o próprio processo de construção da tese.

Fora tudo isso, recomendo que se escreva a tese desde sempre (já falei um pouco sobre a escrita acadêmica num texto anterior). Mesmo que não seja um texto acabado, pronto para ser o texto final da tese, sentir que estamos escrevendo já nos dá confiança de que tudo vai terminar bem. E ter sempre a certeza de que este não é “o” trabalho da sua vida. É um dos primeiros como acadêmico. Então, vai ser imperfeito, incompleto, passível de receber críticas. Mas vai ser um trabalho respeitável, relevante, que vai trazer contribuições para o campo acadêmico e, quem sabe, para a sociedade. Nem que seja uma contribuição pequenina, mas estará lá. Manter a autoconfiança e a autoestima é ultranecessário em qualquer trabalho, ainda mais ao desenvolver um projeto tão grande como é uma tese.

O texto acadêmico

Adoro ler e escrever. Quando pequena, nutria diariamente um diário, à mão, para refletir sobre os acontecimentos do dia. Amava quando tinha que fazer uma redação como tarefa escolar e logo cheguei à conclusão de que não queria tratar doentes, mas sim escrever, e por isso decidi ser jornalista.

Mas gostar de escrever (e de ler) não significa que automaticamente a pessoa escreva bem. Acredito em talento, mas acredito acima de tudo em prática, e em uma boa aplicação da técnica. No jornalismo, demorou um bom tempo para eu sentir alguma segurança na hora de colocar em palavras o que eu havia apurado naquele dia. Mesmo fazendo isso todos os dias.

Ao migrar para o mundo acadêmico, em um primeiro momento pensei que seria bem fácil, já que escrever era parte da minha rotina profissional. Não devia ser tão diferente assim, pensei de cara. A primeira chacoalhada, porém, não demorou a acontecer: quando eu preparava o projeto da minha monografia, ainda na graduação, a querida professora Júlia Miranda, uma mestra na pesquisa em Sociologia, foi firme: “Eu não quero texto jornalístico. Quero um texto acadêmico. Faça tudo de novo”.

Foi só então que me toquei que a diferença entre esses dois tipos de texto é abissal. Enquanto no jornalismo precisamos ser concisos, resumir tudo em poucas palavras (apoiados, muitas vezes, no senso comum, para facilitar a compreensão), na academia precisamos esmiuçar cada conceito, explicar tudo, buscando autores para embasá-lo, e tentar ao máximo se afastar do senso comum. Enquanto no jornalismo nos satisfazemos com declarações para provar o que estamos afirmando, na academia precisamos articular as ideias, os conceitos, contrapor vertentes diferentes, enquadrar a argumentação em uma corrente teórica. Não basta inserir uma coleção de citações (como infelizmente fazem alguns pesquisadores); um texto acadêmico produz conhecimento, e o faz a partir dessa prática de articulação. Sem isso, trata-se apenas de reproduzir o que os outros já disseram, o que é insuficiente.

Não vou nem me ater tanto à questão do estilo do texto – bem mais formal, na academia, do que no jornalismo – porque acredito que esse nem é o principal problema. De todo jeito, eis mais um desafio, já que acaba sendo até fácil fazer um texto acadêmico repleto de jargões e sequências textuais incompreensíveis (e talvez muita gente coloque isso como meta, para parecer que fez um texto mais profundo, ou se sentir mais inteligente). O texto acadêmico, contudo, precisa ser compreensível a qualquer pessoa, mesmo a quem não é propriamente daquela área de estudos, sem ser simplista. Comunicar da maneira mais clara, incluindo o conteúdo mais interessante e amplo possível, é um grande desafio.

E eis onde quero chegar: os objetivos do texto acadêmico são bem diferentes dos objetivos do texto jornalístico. E por isso é que, essencialmente, são textos diferentes. Enquanto o texto jornalístico tem como objetivo principal informar sobre um determinado acontecimento, em acordo com determinada linha editorial, e precisa fazê-lo de um modo suficientemente atrativo, para conquistar a audiência, o texto acadêmico tem como objetivo relatar os percursos e os resultados de uma pesquisa científica, o que o faz tanto a partir de reflexões teóricas, especulativas, e do relato sequenciado de estudos empíricos, cujos resultados levam a novas reflexões teóricas. Resultados que, assim, contribuem para o desenvolvimento do campo de estudos em que o trabalho se insere, levando à proposição de novos rumos de pesquisa, ou de mudanças/confirmações de paradigmas, que podem ser posteriormente convertidos em produtos e políticas públicas, que podem até gerar transformações sociais.

Por tudo isso, acabei tendo que reaprender a escrever. E sigo na luta, pois não é fácil incorporar tantas alterações num corpo já habituado ao texto fluido do jornalismo. Nesse percurso, vale recorrer a ajudas. Uma delas que recomendo muito é o livro de Howard Becker, Truques da Escrita, que traz algumas dicas bem legais. Uma delas é escrever, mesmo quando você se sente meio bloqueado, ou até sem paciência pra ficar coletando autores para compor suas ideias. Depois de tantas leituras, de tantas conversas com o (a) orientador (a), temos muita coisa na cabeça e a melhor coisa é ir colocando no papel (ou no computador). Depois fica bem mais fácil fazer as articulações, mudar de lugar, cortar, inserir novas ideias.

Outra coisa muito boa a fazer é ler prestando atenção à técnica aplicada por outros autores. Veja como os argumentos são montados, como apresentam cada parte do trabalho, desde a introdução, as justificativas, os objetivos, as hipóteses, a metodologia (e os métodos), os resultados da pesquisa empírica e a discussão desses resultados. Veja até de que modo montam cada parágrafo (iniciando com a ideia geral, e depois abrangendo para trazer detalhes, especificações, exemplos) e ordenam a sequência de parágrafos. Mas é bom focar em quem escreve bem. O mundo acadêmico está repleto de textos bem ruins.

Enfim, tudo isso na teoria é muito fácil, mas na hora de sentar e escrever uma tese, são outros quinhentos. O branco da tela assusta e muito, mesmo quando você sabe que tem sei lá quantas páginas de fichamentos, mais sei lá quantas páginas de transcrições, e tem certeza de que está tudo na cabeça. Em outro momento conto como estou fazendo com a minha. Só antecipo que, na hora do “branco”, volto a dar uma de jornalista. Lembro que tenho um deadline curto e começo a escrever partir “do meio”, deixando o começo para depois.

Quantitativa ou qualitativa, eis a questão

Iniciar uma trajetória acadêmica nos leva a fazer uma série de escolhas, e nisso acabamos, muitas vezes, por tomar partido de algumas perspetivas e, na mesma medida, demarcar alguns preconceitos. Muitas dessas escolhas ultrapassam os recortes teóricos, e nos perseguem nas definições metodológicas, o que nos leva, muitas vezes, a querer demonizar uma pesquisa puramente quantitativa, ou uma que tenha sido feita apenas com métodos qualitativos, a depender de que lado nos posicionamos.

Assim, de um modo geral, para analistas do discurso, os estudos baseados em uma análise de conteúdo clássica (ou seja, quantitativa) são em geral pobres, por não se restringirem à superfície do que está escrito; do mesmo modo que analistas de redes sociais, que usam métricas quantitativas para estimar participação e engajamento, entre outros parâmetros, podem considerar insipiente uma pesquisa etnográfica que acompanhe um pequeno grupo online e que privilegie, no lugar da quantidade das interações, o teor do que tratam e de suas reações.

A polêmica entre a pesquisa quantitativa e a qualitativa não é nova e abrange diferentes disciplinas, em diferentes situações, geralmente associando a pesquisa quantitativa a uma maior objetividade científica, que permite fazer maiores generalizações, o que, por sua vez, é associado a uma visão mais conservadora (e até de “direita”), enquanto a pesquisa qualitativa é vista como mais humanista e crítica, menos determinista e mais profunda, sendo associada a posicionamentos “progressistas” ou de “esquerda” (coloco todos esses termos entre aspas por terem diferentes compreensões – e porque não vou discuti-los aqui). Como falei, essa é uma questão bem polêmica, e certamente nem todo mundo precisa concordar com minhas impressões.

Nas Ciências Sociais, a divisão é bem evidente: enquanto a tradição da sociologia, com base sobretudo em Durkheim e Weber, enfatizou a pesquisa quantitativa – para compreender comportamentos recorrentes em determinadas sociedades, a antropologia focou no olhar sobre pequenos grupos, na abordagem etnográfica, na escrita de diários de campo – também para identificar recorrências, mas chamando atenção para as especificidades, as distinções em menor escala. O que é melhor? O que é pior?

Filha das “humanas”, minha tendência natural é entrar no time da pesquisa qualitativa e pronto, sem grandes questionamentos. Afinal, os grandes questionários são generalizações forçadas, mostram padrões que depois não se sustentam na prática, já que a realidade é muito mais fragmentada do que os grandes inquéritos nos fazem crer, e não somos números, somos humanos, multifacetados, incoerentes, e tudo o mais que a complexidade de viver em sociedade nos leva a ser. Mas, bem, pensando bem, não é bem assim.

Muitas e muitas vezes, a busca por padrões gerais, tendências, recorrências generalizadas, pode ser uma boa maneira de se aproximar do objeto de estudo, até para depois buscar compreender especificidades, diferenciações, subjetividades. Mesmo quando partimos de um caso específico, é interessante contrapô-lo com dados mais gerais, relacionados à situação em que ele se encontra, até para poder dizer que aquele caso específico é diferenciado mesmo ou não – e porquê. Como demarca bem Simone de Beauvoir, sempre traçamos dialogismos, e em geral fazemos isso com base em generalizações, que são sim redutoras, mas que podem nos levar a aprofundar certas reflexões. Não precisamos parar nos números.

No fim, o melhor é tentar superar essa dicotomia entre quantitativo e qualitativo e procurar identificar a melhor metodologia possível para responder as questões de investigação formuladas. Há perguntas que buscam respostas gerais, abrangentes. Há perguntas que buscam o específico, o distintivo. E isso pode ser feito por diferentes caminhos, que podem ser exclusivamente qualitativos, quantitativos, ou combinar métodos de diferentes naturezas.

Exemplifico com a minha pesquisa. Minha pergunta principal me leva a fazer uma pesquisa qualitativa – escolhi aplicar uma análise semiótica multimodal em vídeos. Porém, para chegar à resposta principal, entendo que é necessário também responder a questões secundárias, que me fazem, por exemplo, contextualizar o objeto, quantificando-o de certo modo, ao detalhar algumas de suas características mais “gerais”. Por causa disso, acabei tendo de fazer um questionário online, cujos resultados são em sua maioria quantitativos. O que me levou surpreendentemente a usar um programa de análise estatística que eu jurava que nunca ia precisar usar (o SPSS, que é mais um daqueles softwares que ajudam muito). Só que esses números são apenas uma pequena parte do meu trabalho, que me dão uma visão geral sobre os grupos que estou analisando, e me levam a querer aprofundar as reflexões por um viés qualitativo, de modo a explorar toda a heterogeneidade do meu objeto, a sua riqueza.

Diante disso, fica a dica para quem vai se enveredar pela pesquisa acadêmica: coloque seus preconceitos no bolso e não perca a oportunidade de aprender diferentes métodos de abordagem.

Quando vozes alternativas se tornam poderosas

A importância do trabalho jornalístico nem sempre é evidente. Dizemos que é essencial para a democracia, para escrutinar os poderes, mas nos desanimamos quando vemos jornais (em seus mais diversos formatos) que simplesmente reproduzem acriticamente o discurso hegemônico, servindo de repositório de declarações de quem tem dinheiro, de quem tem poder, o que pode até parecer inofensivo, atendendo os critérios dos valores-notícia estabelecidos pela tal objetividade jornalística, mas que prejudica diretamente quem está excluído de tudo.

Essa postura acrítica, ou às vezes até crítica, mas com uma crítica às avessas, que vai contra a tudo o que é de interesse social, considerando sinônimo de interesse público apenas o que é de interesse privado e sobretudo do mercado, felizmente tem sido enfrentada por grupos de jornalismo alternativo que, ao redor do mundo, defendem um comportamento declaradamente engajado, em defesa dos setores da sociedade sem privilégios, excluídos, e oposição direta à lógica dominante. O preço a pagar por essa postura é, muitas vezes, ser considerado ilegítimo, ou não-jornalismo. Este artigo do Público fala um pouco dessa visão distorcida sobre o jornalismo.

Mas a insistência, ou melhor, a resistência gera também bons frutos. Vou apresentar um exemplo recente da Espanha, o portal ElDiario.es, que após um furo de reportagem e uma grande sequência de desdobramentos, acabou fazendo com que a presidenta da Comunidade de Madrid, Cristina Cifuentes (do Partido Popular, de direita), renunciasse ao cargo.

 

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Publicação do ElDiario.es após a renúncia de Cristina Cinfuentes, ressaltando o papel do jornal na decisão da até então presidenta da Comunidade de Madrid

 

Pra começar, vou fazer uma contextualização do jornal. O ElDiario.es foi fundado em 2012 por um grupo de jornalistas que decidiu montar uma empresa. O principal meio de financiamento (mais de 70%) é com a venda de cotas de sociedade, vendidas a partir de 5 euros por mês, contando hoje com mais de 30 mil sócios. O restante vem de publicidade. A redação hoje conta com cerca de 80 jornalistas e não é deficitária. Ou seja, consegue pagar todas as despesas. O acesso às notícias segue gratuito para todos.

No último dia 21 de março, o jornal trouxe um furo. Cristina Cifuentes, presidenta da Comunidade de Madrid (o que equivalente, grosso modo, a governadora) e uma das figuras políticas mais proeminentes no partido do presidente da Espanha, Mariano Rajoy, tinha obtido um título de mestrado na Universidade Rey Juan Carlos, que é pública, com notas falsificadas. A cobertura ultrapassou e muito essa primeira denúncia. Dia após dia, surgiam novidades: o trabalho de fim de mestrado não constava nos arquivos da universidade, a ata da defesa desse trabalho final tinha assinaturas falsificadas de membros da banca, alunos que frequentaram o mesmo mestrado alegavam nunca ter visto Cifuentes nas aulas do curso, mesmo a matrícula havia sido feita depois de três meses de iniciadas as aulas, sendo que alguns módulos já tinham sido encerrados (e mesmo assim Cifuentes tinha recebido notas altas pelas disciplinas). Aqui dá para ver algumas das capas do portal com notícias sobre o caso. Denúncias reforçadas pelas contradições da própria presidenta da Comunidade de Madrid – que sempre negou qualquer ilegalidade, mas passou a responsabilizar a faculdade por possíveis erros – e por dirigentes universitários.

Desde o primeiro dia, a cobertura do ElDiario.es gerou repercussão tanto no parlamento, como em outros grupos mediáticos, inclusive a televisão, que começou a debater o tema também diariamente, tanto nos programas informativos, como nos humorísticos e de debates. Com exceção da TV estatal, a TVE, que preferiu minimizar o caso minimizar o caso o quanto pôde. Diante do estrago, Cifuentes decidiu processar os jornalistas que estavam à frente da cobertura, alegando que eles mentiam. E os jornalistas insistiam que não, era ela quem mentia.

Partidos da oposição chegaram a apresentar uma moção de censura contra a presidenta, que seria votada em maio e que poderia levar à necessidade de novas eleições, e mesmo assim Cifuentes repetia que não iria renunciar (a versão completa desse vídeo, que se tornou célebre pela expressão “no me voy, me quedo” que ele usou para negar a renúncia, pode ser vista aqui), imaginando que o tempo pudesse esfriar o assunto. Enquanto isso, estudantes e professores da Universidade Rey Juan Carlos se mobilizavam para protestar contra o uso da instituição pública para favorecer políticos por meio fraudes que a desqualificam.

Só que o ElDiario.es e outros meios (alternativos ou não) não deixaram isso acontecer, e seguiram alimentando o noticiário com novidades. Até o dia 25 de abril, quando um site que notadamente mais publica fake news do que notícias verificáveis, o OkDiário, trouxe a público um vídeo de 2011 que mostrava Cifuentes sendo desmascarada por seguranças de uma loja após tentar roubar dois frascos de creme anti-idade. Após ser descoberta, Cifuentes pagou pelos produtos e não houve maiores consequências, contudo o vídeo sobreviveu. E causou sua queda (pelas regras, Cifuentes continua sendo deputada, e o PP tem a chance de apresentar um novo nome para constituir governo, tendo que passar pelo crivo da maioria da Assembleia de Madrid).

Por um lado, pode parecer que houve uma perseguição de um meio de comunicação contra uma personalidade política, como a gente está acostumado a ver no Brasil contra Lula, Dilma e cia. (desde que sejam do PT). Mas a postura do ElDiario.es tinha uma notável diferença: toda a cobertura se pautou em apuração jornalística de boa qualidade, com documentos atestando tudo o que se falava, e que acabavam expondo contradições. Não ficou em meras declarações, achismos e opiniões pessoais. Mais do que isso, o jornal acabou se voltando contra a principal força política da Espanha, o PP, partido que detém a maioria nacionalmente, e se voltar contra o poder – que conta com a simpatia do mercado financeiro e dos setores produtivos do país –, não é tarefa fácil. Como o sustento do periódico é garantido pelos leitores, pôde-se correr riscos.

Enfim, de toda essa história, a principal lição que dá pra tirar é que quando existem meios de comunicação plurais em um determinado local, com perspectivas políticas diferentes (claramente o ElDiario.es é mais alinhado à esquerda), e com recursos para investir em matérias próprias, furos, grandes reportagens, crescem as chances de vir à tona histórias de abuso do poder como essa de Cifuentes, o que é muito importante tanto para aprimorar as práticas cidadãs (já que as pessoas poderão se sentir mais incentivadas a denunciar irregularidades diante desse exemplo, que foi originalmente denunciado por estudantes do mestrado), como as práticas políticas, já que notadamente haverá uma maior vigilância. Quando a mídia é uma coisa só, repetindo apenas um mesmo discurso, sem divergências e apenas um alvo em comum, essa possibilidade deixa de existir.

Discurso de ódio, liberdade de expressão e a ameaça à democracia

Já escrevi em outro post sobre o discurso de ódio, mas volto ao tema, inspirada tanto pelos recentes acontecimentos do Brasil, com a morte da Marielle, a iminente prisão do Lula e toda a violência que vemos brotar em todas as capitais do Brasil, como por uma palestra que vi ontem na Universidad Carlos III de Madrid. Sob o tema “Discurso de ódio: há espaço para regulação?” (tradução minha), a pesquisadora grega Katharine Sarikakis, professora na Universidade de Viena, tratou do tema, apresentando diferenciações extremamente relevantes entre o discurso de ódio, a liberdade de expressão e a ofensa.

Sim, o discurso de ódio não nasceu com as redes sociais, nem é exclusividade do Brasil. É fácil lembrar do que fez o regime nazista contra os judeus por meio da propaganda, e que logo se materializou nos campos de concentração e nas mortes massivas. E o que acontece com milhares de refugiados que sequer conseguem entrar na Europa, e ficam presos em novos campos de concentração com condições sub-humanas, alimentadas por falas de políticos, como Marine Le Pen, na França, Viktor Orbán, na Hungria, ou Geert Wilders, na Holanda (nomes que vão se multiplicando cada vez mais, em todo o território europeu, focados em um inimigo comum, o imigrante).

O discurso de ódio, como explicou Sarikakis, é um conceito que precisa ser melhor trabalhado, já que passa por questões subjetivas e conjunturais, mas que tem como ponto de partida o direito humano de existir e de ter dignidade. Assim, é discurso de ódio todo aquele que incita ou encoraja o ódio, a discriminação e a hostilidade. São discursos que ferem, como diz a Judith Butler, que ameaçam diretamente o corpo.

O discurso de ódio, assim, não pode estar protegido pelo princípio universal da liberdade de expressão. A liberdade de expressão é um direito humano, mas limitado por outros direitos, como o direito à dignidade, o direito a não ser desumanizado nem demonizado, o direito a não ser exterminado socialmente (nem simbolicamente, nem fisicamente).

Ainda assim, trata-se de um conceito abstrato. Na Europa, há tentativas tanto dentro do blodo da União Europeia, como em legislações nacionais, de regular o discurso de ódio, para criar punições a quem os dissemina. Nessas tentativas, inclui-se como discurso de ódio os de cunho racista, anti certas religiões, contra certas orientações sexuais, os de discriminação por gênero, os de negação ao holocausto, os de apoio a regimes totalitários, os anti-políticos e os anti-constitucionais. Não deixa de haver críticas a essas tentativas de regulação, como mostra este artigo do Gleen Greenwald.

Combater o discurso de ódio, como disse Sarikakis, não é negar a discordância nem mesmo suprimir o direito à ofensa. Pode-se ofender, pode-se criticar, mas não difundir o ódio, não pregar a destruição do outro. Assim, parte-se da ideia de que em um sistema democrático plural, ninguém tem o direito de não ser ofendido, e todas as ideias, opiniões, credos, podem ser criticados e até satirizados. O que se deve coibir são falas que incitam a violência, o ódio e a discriminação contra pessoas. E isso tem a ver com uma hierarquia de poder. Afinal, só há discurso de ódio quando alguém com poder tenta massacrar um outro que não tem poder.

Vamos a exemplos práticos e bem mais próximos da gente. Com a morte da Marielle, veio à tona um discurso de que ela só colheu o que plantou, por ser dos “direitos humanos” e bandidos, que tinha até se envolvido com traficante. Esse discurso é um discurso de ódio por legitimar a violência física (e até assassinatos) de qualquer pessoa com o mesmo perfil de Marielle, pessoas que defendem moradores de favelas, mulheres negras, lésbicas, que entram na política e conseguem visibilidade e apoio pelo que dizem. Não precisa ninguém dizer claramente que se deve matar fulano ou ciclano para se efetivar um discurso de ódio. Este artigo traz com mais detalhes o que se falou contra Marielle.

Outro exemplo é o anti-lulismo. Não é crime não gostar do PT, não votar no PT e fazer críticas às políticas do partido ou a seus integrantes. Não é crime preferir outros nomes, outros partidos. O problema é a demonização, que se dá com o emprego de expressões como “esquerdopatas” e com a defesa do uso de violência contra os apoiadores do partido, como aconteceu nas viagens de Lula ao sul, com oposicionistas chicoteando e apontando armas contra a comitiva do ex-presidente, culminando com os tiros dados nos ônibus que acompanhavam a caravana.

Um último exemplo: defender a volta dos militares ao poder, por meio de um golpe – ou mesmo ficar celebrando a “revolução de 64”, como se fosse algo necessário para o momento atual, é sim discurso de ódio. Tanto porque trata de uma medida que vai contra a constituição, por suprimir a ordem democrática, como por reintroduzir como uma possibilidade todas as violências sofridas no período autoritários contra cidadãos e cidadãs que se opuseram ao regime, e que foram presos, torturados e mortos para que fossem calados. Essa memória não é descartável, precisa ser rememorada a cada instante, ainda mais num momento como esse, em que parece ser cada vez aceitável ouvir gente de alto escalão pregar publicamente que a melhor saída é uma ação do Exército para retomar a moralidade da vida pública no país, porque isso desrespeita frontalmente todas as conquistas políticas e sociais dos últimos 30 anos. Ao não enfrentar esse discurso como ele deveria ser enfrentado, como um discurso de ódio e, assim, um crime, nosso país está permitindo que a violência cresça, se dissemine e alcance patamares inimagináveis. Porque é assim que o discurso de ódio funciona, se materializando em mais violência, psicológica, social e física.

Como saída, para além de construir marcos regulatórios específicos sobre o discurso de ódio (que possivelmente no Brasil seriam usados para criar mais formas de perseguição, diante da Justiça e do governo que temos), o mais importante para combater essa forma de violência é a educação para as mídias, em Portugal chamado de literacia mediática (media literacy em língua inglesa). Que deve ser vista não apenas como o ensino para melhor usar os dispositivos midiáticos, mas sim para que todos sejam capazes de entender como se dá a construção dos discursos, o que há por traz de cada fala, tanto por seu conteúdo, como por sua forma, e tenham a clara noção do que significa reproduzi-las. Temos que educar para que as pessoas utilizem as diferentes mídias com a máxima consciência, e não iludidas por performances, sem ter nem ideia das consequências dos seus atos. Só em um cenário assim teremos cidadania e a possibilidade de ter uma democracia plural de verdade.

 

Marielle Franco e Mmame Mbage, presentes!

O assassinato da vereadora Marielle Franco na noite da última quarta-feira, dia 14 de março, no Rio de Janeiro, repercutiu com um toque a mais de indignação na Espanha. Isso porque um imigrante do Senegal, Mmame Mbage, de 35 anos, morreu um dia depois, no início da noite do dia 15, ao ser perseguido por policiais no coração de Madrid.

Aparentemente a morte de Mbaye foi por ataque cardíaco. Mas isso não impediu que milhares de pessoas acusassem a polícia madrilena de assassinato. Em protestos tanto na quinta, dia 15, como neste dia 16, manifestantes gritavam “Polícia assassina” e “A polícia tortura e assassina”, entre outros gritos de indignação. Em paredes e na porta de alguns comércios, viam-se colados panfletos que diziam “Mmame Mbage presente!”, em clara associação à morte de Marielle.

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Vivendo há 12 anos na Espanha, Mbage permanecia ilegal, mesmo depois de inúmeras tentativas de regularizar os “papéis”. O que acontece, segundo relatos de amigos que falaram a periódicos locais, entre eles El Salto, por obstáculos impostos pelo próprio serviço de imigração.

Ilegal, Mbage trabalhava como vendedor ambulante ou fazendo pequenos bicos temporários. Apesar das dificuldades, era querido não só pela comunidade senegalesa, mas também engajado com os demais ambulantes, participando até de uma organização sindical criada para defendê-los.

A própria gestão do ajuntamento de Madrid admite que, no dia em que Mbage morreu, a polícia cumpria uma ação de retirada dos vendedores que atuam no centro de Madrid, vendendo réplicas de bolsas e outros produtos em tapetes no chão, os chamados “manteros”. Só não admite que a polícia possa ter errado, ao perseguir por vários quarteirões os vendedores. Testemunhas dizem ter visto Mbage correr ao ser perseguido por policiais sobre motos, até não aguentar mais.

A manifestação do dia 16 começou em uma praça emblemática para a comunidade negra madrilena, a Praça Nelson Mandela, no bairro de Lavapiés, a poucos metros de onde Mbage morreu. Milhares de pessoas participaram do protesto, mesmo sob a coação da polícia, equipada com inúmeros carros, helicóptero e armas. E mesmo que, no dia anterior, logo após a morte do vendedor ambulante, a revolta espontânea da comunidade local tenha sido calada à base de cassetetes e tiros de bala de borracha atirados pela polícia.

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Além de acusar a polícia, a comunidade que se manifestava também repelia qualquer tipo de racismo e denunciava a criminalização dos imigrantes. “Nenhum ser humano é ilegal”, gritavam.

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O racismo, por mais irracional que seja, segue sendo um dos mais graves problemas vividos na contemporaneidade. Ao que se soma a pobreza, o sexismo, a ganância e a falta de empatia e de senso de justiça que povoa as mais diferentes sociedades, em nome de valores tão egocêntricos, como o nacionalismo e o dinheiro.

Por isso, a indignação vivida por causa da morte de Marielle, no Brasil, e de Mmame Mbage, em Madrid, precisa ser expandida, ganhar volume, alcançar outros espaços, outras dimensões. Essa indignação precisa ser motor de resistência, para quem sabe gerar mudanças. Porque não dá mais para aceitar tanta desumanidade.

Claro que são duas mortes que aconteceram em contextos diferentes, em países diferentes. Mas que tem a violência policial contra negros como ponto em comum. E a revolta contra esse ponto comum me fez sentir, ao participar do protesto contra a morte de Mbage, como se estivesse me manifestando contra todas as mortes violentas sofridas por negros e pobres no Brasil. Contra o assassinato de Marielle. Porque, no fundo, somos todos gente, que merecemos boas condições de vida, oportunidades, tudo o que está sendo negado há tempo demais contra uma enorme parcela da população só por causa da cor da pele.

Feminismo e democracia: quando votar não basta

Como acontece todos anos, no dia 8 de março vendedores ambulantes saíram às ruas para vender flores, alguns homens decidiram “homenagear” suas parceiras com presentinhos, e houve muita discussão nas redes sociais, com muitas mulheres cobrando respeito e igualdade, em vez de um breve parabéns. Mas houve também mobilizações nas ruas mundo afora, que culminaram na greve das mulheres na Espanha.

A greve do 8M foi pensada para acontecer em todos os sentidos: nos cuidados domésticos, no trabalho, nos estudos. E houve muitas críticas no período de convocação do protesto, inclusive de grupos de esquerda, que consideravam que a greve era elitista, que só poucas mulheres teriam como parar de verdade, que de uma certa forma era até opressora por colocar em risco o trabalho das mulheres mais vulneráveis. Mas claramente essa resistência tinha outro fundo: como assim, os homens teriam que fazer tudo, até cuidar de si mesmos, por um dia? Seria um desastre.

O protesto pode não ter tido a participação de 100% da população feminina, mas imagens do protesto que tomou as ruas do centro de Madrid deixam claro que a adesão foi fulminante. Milhares nas ruas. Um grito de basta às desigualdades que afetam salários, carga horária de trabalho, acesso a postos de poder, perspectivas de vida. Em pleno 2018, o abismo entre homens e mulheres segue imenso, e não venham me dizer que “ah, mas muita coisa mudou, as mulheres podem até votar e ser votadas… As mulheres podem trabalhar como quiserem, podem ser motoristas, trabalhar na construção civil, ser engenheiras. Todas as barreiras já foram ultrapassadas”.

 

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Greve feminista na calle de Alcalá, em Madrid. Foto: Juanlu Sánchez/ElDiario.es

 

Antes de pensar em como tudo mudou, pense e quantas mulheres chegam de fato a postos de liderança. Quantas mulheres lideram governos, grandes empresas? Quantas mulheres são reitoras de universidades? Podemos ser maioria no corpo de professores, mas dificilmente chegamos aos cargos de direção. Por quê? Por alguma incapacidade inata relacionada ao sexo? Não, evidentemente. É pela persistência de um sistema machista, que sutilmente limita a participação da mulher nas mais diferentes esferas.

E justamente por essa desigualdade ser estrutural, está mais do que absorvida por nossas estruturas, inclusive pelo modelo democrático representativo hegemônico. Sim, votamos, e até somos a maioria dos votantes, podemos ser votadas, mas não conseguimos ser efetivamente representadas.

Por causa dessa falta de equivalência entre a demanda social e o que é efetivado nas esferas democráticas é que devemos buscar formas de participação alternativas, que não necessariamente estejam contempladas pelas instituições oficiais. Movimentos feministas que possam discutir o papel da mulher em diferentes contextos, na família, na economia, na política, na educação, na saúde, na ciência, no meio ambiente, enfim, são certamente o melhor caminho para avançarmos para um nível de participação bem mais abrangente do que temos hoje.

Uma participação que não se restrinja ao voto. Que nos permita ter acesso de fato ao poder. Me apego aqui à definição de participação de Nico Carpentier (2017), que tive a honra de ter como professor durante toda esta semana e que trabalha o conceito a partir de um ponto de vista muito mais profundo, ao considerar a participação como um ato político.

 

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Nico, durante aula sobre teoria do discurso, na Universidade de Uppsala

 

Pela visão de Carpentier, há diferentes intensidades de participação, e quanto mais os não-privilegiados, engajados em certo tema, têm acesso a esferas de poder e influenciam nas tomadas de decisão, maior é o nível de participação, e, assim, mais ampla é a democracia.

O que nós mulheres temos ainda é muito pouco. Não basta. Não basta ver apenas meia dúzia de candidatas, muitas delas esposas, irmãs ou filhas de políticos de carreira, que não podem mais se candidatar (pela ficha suja, por exemplo). Não basta receber uma rosinha e um raso parabéns no dia 8 de março. Não basta estar no mercado de trabalho fazendo o trabalho “dos homens”. Queremos igualdade de acesso, de oportunidade, de voz. Queremos receber os mesmos salários. Queremos ser ouvidas e que nossa opinião influencie efetivamente as decisões. Queremos ser vistas como parceiras, não como as únicas responsáveis por todos os cuidados domésticos e dos filhos. Queremos que respeitem nossos corpos e nosso modo de ser, que não venham nos impor mais padrões estéticos nem morais que na verdade contemplam só o bem-estar dos homens. Queremos de fato participar.