Orientadores fantasmas, sanguessugas e messiânicos

Todos os que já passaram pela experiência de fazer um mestrado ou um doutorado sabem da importância do orientador, para o bem ou para o mal. No meu post anterior, falei de algumas expectativas que devemos ou não ter em relação a esse personagem, mas minha abordagem acabou tendo um viés muito mais positivo, afinal tenho tido sorte, sempre contando com a supervisão de professoras maravilhosas. Infelizmente, essa não é necessariamente a regra, como bem me lembrou a querida Grazi Albuquerque, e por causa da intervenção dela, decidi falar sobre o outro lado dessa moeda, dos maus orientadores.

Todo o problema começa porque, independentemente de ter um bom ou um mal orientador, em geral nós, estudantes de pós-graduação, não temos como saber exatamente o que seria uma boa ou uma má orientação. E justamente por essa falta de conhecimento, acabamos criando às vezes expectativas que não serão atendidas, ou aguentando maus tratos, desaforos ou, o que é até mais comum, o silêncio dos (des)orientadores, o que gera culpa (será que estou fazendo alguma coisa errada? Ou será que estou sendo exigente demais?) e aumenta o sentimento de solidão do orientando.

Esse sentimento se amplia ainda mais pela falta de espaços de troca de experiências entre os pós-graduandos. Trabalhamos sozinhos e acabamos aguentando todas as agruras da pesquisa também sozinhos. Mas não precisa ser assim, e por isso mesmo, sempre que possível, quando encontro colegas que estão no mesmo barco que eu, acabo abordando a relação com os orientadores, o que me permite ter alguma noção das práticas que rolam nesse universo académico. E os relatos não são muito animadores.

A partir desses relatos, pensei em três tipos de péssimos orientadores que são muito comuns. Claro que não são os únicos (não se trata de uma pesquisa a sério, como se diz aqui em Portugal, mas apenas uma síntese feita a partir de impressões), e por isso mesmo peço que, quem tiver outros exemplos, me mande nos comentários do blog, que depois posso até preparar outra postagem com uma continuação dessa reflexão. Então, vamos aos tipos:

  1. Orientador fantasma: aquele que desaparece, não marca reuniões, não orienta, como se não existisse. Pior, não lê os textos que o orientando já escreveu, não dá nenhum retorno. Trata-se de um tipo muito comum, incluindo até figuras de renome, grandes pesquisadores, e pode até “funcionar” com aqueles estudantes mais autônomos, que até preferem fazer tudo sozinhos. De todo modo, trata-se de um tipo bem nocivo, sobretudo para quem precisa de uma atenção maior para tocar o seu trabalho.
  2. Orientador sanguessuga: até pode parecer um bom orientador, é relativamente presente, incentiva o orientando a produzir (e incluir o seu nome nas publicações), mas sem contribuir com uma linha sequer, nem mesmo com correções. O peso de todo o trabalho fica nas costas do orientando, mas quem leva os louros é esse tal orientador. Aqui cabe, lógico, um adendo: é muito benéfico que o pós-graduando faça trabalhos e publique em parceria com o seu orientador, mas o ideal é que esse trabalho seja feito em parceria mesmo, a quatro mãos.
  3. Orientador messiânico: decreta leis e quer que o orientando o siga cegamente, sem permitir nenhum pensamento divergente, crítico. Esse é um tipo mais agressivo, pois pode até perseguir o próprio orientando, boicotá-lo. O messiânico praticamente define a pesquisa que o orientando deve fazer, sem abrir brecha para que ele busque inovações, tenha leituras diferentes, desqualificando toda e qualquer tentativa de o orientando deixar uma marca própria no trabalho. Pode funcionar bem com pessoas que preferem seguir um plano já demarcado, sem surpresas, mas é nocivo de todo modo por se preocupar mais em preparar um seguidor do que propriamente um pesquisador com pensamento próprio.

Claro que essas são generalizações que pressupõem tipos “puros”, podendo haver hibridismos e gradações de cada um desses comportamentos na vida real. Porém, ser um pouco menos fantasma, ou levemente messiânico, não reduz tanto assim o problema. Um mau orientador faz com que o trabalho académico se torne um peso enorme para o estudante, maior do que ele deveria ser, aumentando a ansiedade, a insegurança e a baixa autoestima e gerando uma tensão no ambiente académico que não deveria existir.

A mudança, para evitar que isso aconteça, não é simples, porque passa por transformações não só individuais, mas também institucionais e na própria cultura da academia, que alimenta egos e um estrelato que só existe, no fim das contas, nas cabeças dos que se sentem acima do bem e do mal (mas que, na verdade, só são servidores públicos como os demais). Contudo, vale aqui uma dica: caso você, orientando, se sinta prejudicado ou insatisfeito com o seu orientador, deve conversar com ele, expor o que sente, procurar, sempre que for o caso, as instâncias superiores (como a direção do curso) e, em último caso, pedir para trocar de orientador. Essa é uma situação extrema, porém pode salvar não apenas trabalhos acadêmicos, mas a saúde física e mental do estudante.

A solidão do doutoramento e o papel da orientação

A pesquisa acadêmica não é necessariamente sinônimo de trabalho individual, mas em um doutorado essa relação costuma ser enfatizada. Primeiro porque poucas vezes (falo especificamente sobre as ciências sociais aplicadas) os doutorandos se integram a projetos de investigação mais amplos, repletos de integrantes. O mais comum é cada um construir o seu próprio projeto e encaminhá-lo individualmente. Segundo, porque nem sempre o contexto permite que os doutorandos de uma determinada turma mantenham o convívio mais próximo. Em geral, depois que as aulas terminam, cada um vai para a sua casa, centro de pesquisa ou biblioteca, e vai tocar sua pesquisa sozinho.

Tocar a pesquisa sozinho implica em uma série de coisas, a começar pela gestão do próprio tempo, afinal, como qualquer pessoa que trabalha em casa, podemos tanto trabalhar dia e noite, como também começar a protelar, protelar até sabe-se lá quando. Também implica uma boa organização, a definição de objetivos que possam ser cumpridos e bom senso na execução das etapas empíricas do estudo. Responsabilidades que podemos associar à de um empreendedor que está à frente de um novo negócio, mas que possui uma “clientela” especial, formada grandes especialistas de sua área, que têm o papel de definir se o seu trabalho é o suficiente para lhe atribuir o título de doutor – ou seja, o certificado de que, agora sim, você faz parte do campo acadêmico.

Para completar, todo esse processo de feitura de uma tese de doutorado é bastante longo, durando mais de 3 anos (o meu já passou de 3 anos e meio), o que contribui enormemente para o surgimento de alguns sintomas bastante negativos e alimentados pela solidão.

Em outro post, dei algumas dicas de como sobreviver ao doutorado, mas senti falta de falar um pouco mais do assunto, pois estou vivendo esse sentimento de solidão há algum tempo. Uma sensação que mistura a satisfação de estar com a pesquisa em fase bem avançada, de ver as páginas que vão formar a tese se sucedendo, de sentir que estou realizando um trabalho bacana, com resultados interessantes, mas ao mesmo tempo não ter com quem falar sobre tudo isso e sentir que, ao me calar, me entristeço, vou me consumindo.

Sentir isso faz todo sentido e em doses mais severas, se torna bastante preocupante, como mostrou uma pesquisa da Universidade de Kentucky (EUA) divulgada em 2018, cerca de 39% dos estudantes de doutorado chegam a apresentar sintomas de depressão, desde leve até severa – enquanto a média na população em geral é de 6%. Outros estudos confirmam a tendência à deterioração da saúde mental dos doutorandos.

Nem tudo é tão solitário assim. Trocamos ideias preciosas sobre os nossos objetos nos eventos acadêmicos, onde, na imensa maioria das vezes, pesquisadores mais experientes são super receptivos e abertos a ouvir e opinar da forma mais construtiva possível. Nos eventos também sempre encontramos outros jovens pesquisadores, com quem podemos partilhar nossos anseios, medos e experiências e, com isso, deixar de nos sentir tão sozinhos e incompreendidos.

Acima de tudo, temos o orientador, ou, como no meu caso, a orientadora. A pessoa que conhece seu trabalho tão bem quanto você, e melhor, pois sabe identificar suas fraquezas e suas potencialidades, e que dá os feedbacks da maneira mais sincera possível para que você possa melhorar o que está fazendo, até entregar uma tese digna do nome.

Entretanto, nem sempre estamos lado a lado com o orientador. Inclusive por isso, muitos doutorandos se sentem um tanto abandonados pela ausência de um contato mais frequente e mais caloroso. O que não é necessariamente papel da orientação. Por conta disso, decidi enumerar aqui alguns dos papeis que devemos esperar, e outros que não devemos, da relação com o orientador:

1 – Ler o que o orientando escreveu, corrigindo tanto questões relacionadas à epistemologia, como à metodologia e até à correção gramatical;

2 – Acompanhar o cronograma de trabalho do orientando, cobrando-o sobre prazos;

3 – Apoiar a participação do orientando em eventos acadêmicos, contribuindo na revisão ou até na confecção (em parceria) de resumos, e também, sempre que necessário, enviando cartas de recomendação;

4 – Participar do planejamento do trabalho do orientando, discutindo prazos, quantidade de trabalho e a pertinência de tudo o que está sendo feito;

5 – Não devemos esperar que o(a) orientador(a) se torne um(a) amigo(a) ou pior, pai/mãe. A relação inclui ter empatia e respeito mútuo, mas não necessariamente intimidade e muito menos atitudes paternalistas. Claro que varia de pessoa para pessoa, e há aquelas com as quais nos identificamos profundamente, fazendo com que a orientação depois se transforme em uma grande amizade. Mas, em geral, trata-se de uma relação de trabalho, devemos sempre lembrar disso;

6 – Não devemos esperar que o(a) orientador(a) faça o trabalho para si, indique todos os textos que deve ler, e defina exatamente toda a metodologia que deverá aplicar. Parte do trabalho do pesquisador-doutorando é construir seu próprio caminho, encontrar novas leituras, possíveis metodologias. O(a) orientador(a) vai evidentemente indicar o que considera essencial, mas a investigação jamais poderá se restringir a isso, devendo ir além. Afinal, com acertos e erros, o trabalho é do doutorando.

Portanto, por mais que o orientador seja impecável, acompanhando tudo de perto e dando todos os retornos possíveis, o trabalho de investigação no doutoramento é na maioria das vezes solitário. Não há como mudar isso. E por isso é tão importante permanecer atento ao bem estar físico e mental, ter tempo para se cuidar, para se divertir, para ter hobbies, e para não ser apenas um doutorando.