Academia, um local de poucos: sobre racismo e elitismo

Há muitas mulheres atuando em universidades como professoras, pesquisadoras, gestoras. Mas há poucas que alcançam postos de poder e posições mais destacadas. Já falei disso em outro post, considerando que se trata de um sinal claríssimo, entre outros, do quanto a academia é um ambiente machista. Porém, constatar isso é muito pouco. Precisamos reconhecer o quanto a academia é um dos ambientes mais excludentes, mantendo uma aparência de abertura, aceitação e diversidade. Sim, a academia é machista, racista e sobretudo elitista, sendo profundamente estruturada por mecanismos que vão, pouco a pouco, eliminando as chances de mulheres, negros, indígenas, pessoas trans, pessoas que têm alguma deficiência e, principalmente, pobres, de participar efetivamente do campo.

Essa história, lógico, não é nova, mas no Brasil, com a criação das cotas raciais e econômicas, além das bolsas que permitiram que muita gente das classes mais baixas tivesse a chance de cursar um mestrado e um doutorado, o ambiente acadêmico parecia ter mudado um pouco (mudança que, no fim das contas, está sendo mega ameaçada pelas ações desse desgoverno que pilha o país). Quando a gente muda o foco de análise, e passa a usar um filtro mais alargado, a história é outra, ou seja, constatamos que as exclusões continuam muito presentes.

Confesso que a ficha só caiu pra mim com mais clareza agora, em um evento gigantesco nos Estados Unidos, o Congresso da ICA (International Communication Association). O evento acontece em Washington D.C. e eu vim para participar de um painel sobre jornalismo e ativismo. Sinto que é um imenso privilégio estar aqui, por ser da América Latina, mulher, de origem nada abastada, e que segue ralando para alcançar algum lugar ao sol nesse campo da pesquisa em comunicação. Também é uma enorme oportunidade de ver pessoalmente muitos dos figurões cujos textos estão sendo importantes para a minha tese, e principalmente para ouvi-los dizer coisas que corroboram demais com o que estou escrevendo (em outro post vou falar disso). Mas foi meio chocante, em um primeiro momento, quando me dei conta de que estava em uma sala sem nenhuma pessoa negra, nem na plateia, nem entre os palestrantes. E, de novo, em uma nova sessão de trabalhos, apenas uma pessoa negra na plateia. E, mais uma vez, no máximo uma pessoa na audiência. Entre as nove sessões que eu assisti, apenas uma contou com uma pessoa negra entre os painelistas, uma pesquisadora do Kênia, presente porque o tema assim o requeria (falava das diferenças entre Leste e Oeste pós fim da Guerra Fria).

Sessão sobre consumo midiático durante Congresso da ICA, em Washington D.C: mais uma vez, só havia uma pessoa negra na plateia (no cantinho esquerdo da foto), e nenhuma entre os palestrantes

Se estendermos essa reflexão para os autores que citamos nos nossos trabalhos acadêmicos, quantos são negros? Mais ainda, quantos são mulheres negras? Possivelmente, dá para contar nos dedos – fazendo aqui uma autocrítica, eu mesma cito pouquíssimos, ainda que tenha, entre os meus autores prediletos, Stuart Hall, sempre muito acionado. Isso não acontece à toa: simplesmente são poucos os negros que chegam à academia, menos ainda os que concluem um doutorado, e menos menos ainda os que ingressam na elite do campo acadêmico internacional. Como interpretar isso? Racismo.

Acho que estar nos Estados Unidos (pela primeira vez, por sinal) contribuiu para que essa percepção se tornasse ainda mais avassaladora. Afinal, o país tem uma diversidade imensa, e a população negra é praticamente onipresente, mas ocupando determinados postos de trabalho, como no atendimento ao público, servindo nos restaurantes, fazendo a segurança de espaços privados, na polícia e na limpeza das ruas. Será que não haveria pessoas negras norte-americanas interessadas em produzir pesquisa em comunicação? Certamente, há. E, certamente, poderia haver mais ainda. O que parece não haver é abertura no campo para aceitar as diferenças.

As exclusões, como falei, não se restringem ao gênero, à etnia, mas afeta especialmente as condições sociais, o que é delimitado por exigências muito sutis, como a língua e a linguagem. Se é difícil para quem fala inglês, mas não pertence ao “universo” previamente delimitado pelos preconceitos que constroem muros nas relações sociais por razões absurdas, imagina para quem não fala. A academia cria coerções que incluem a adesão a uma determinada linguagem, a determinadas técnicas, a determinados métodos, para que uma produção seja aceita. Mas, para além disso, é preciso ter fluência em outros idiomas, o que nem sempre é fácil para quem é de origem humilde, tem que trabalhar durante o dia e estudar à noite, e ainda virar a noite para concluir uma monografia (esse foi o meu caso). Penso nisso toda vez que dou meus tropeções na língua escolhida para internacionalizar a ciência, mas penso mais ainda que essa obrigatoriedade naturalmente se torna um obstáculo, nutrindo uma natureza excludente que deveria ser incompatível com o espírito acadêmico.

Ah, alguns podem alegar, mas para manter a qualidade, a ciência precisa ser excludente, precisa ser exigente. E quem disse o contrário? Discuto aqui a construção de barreiras que impedem que pessoas com alguma diferença consigam produzir um trabalho de qualidade e se destacar no meio acadêmico. Discuto que as ausências não são coincidência, e sim a materialização das relações hegemônicas que perpetuam as desigualdades. E afirmo que, ao constatar tudo isso, senti vergonha de fazer parte dessa farsa.

Para que mudanças sejam realmente possíveis, é preciso, primeiro, identificar o problema, para em seguida discutir à exaustão possíveis saídas, que certamente deverão passar por mobilizações e luta. Afinal, não serão atitudes individuais, ou histórias de “sucesso”, que farão a diferença, mas a ação política que pressione as instituições a mudar. Por isso, continuarei no campo. Mas não com os olhos vendados, achando que é tudo lindo, divino, maravilhoso. Como as demais esferas da vida pública, a academia é palco de imensas distorções e merece ser criticada e problematizada. Reduzir as desigualdades no meio acadêmico é crucial para reduzirmos, também, no restante da sociedade.

Algumas questões sobre o lugar de fala na academia (e fora dela)

Hoje decidi fugir um pouco do objeto da minha tese pra pensar alto.

Há poucos dias, fui assistir uma discussão sobre feminismos (no plural mesmo) e tive a chance de presenciar uma performance impressionante, de uma mulher jovem, negra, lésbica, vivendo num país estrangeiro, que refletia sobre si mesma nesse contexto e exaltava suas virtudes. Era Gê Escobar, que faz doutorado em Estudos Culturais em Portugal. Foi lindo. E no meio de tantas falas discordantes desse encontro, onde 95% eram mulheres, alguém falou sobre o lugar de fala. Um conceito muito importante, bem trabalhado pela linguística, pela semiótica, pela sociologia, a antropologia e a psicologia, mas muitas vezes esquecido no dia a dia (como aspecto relevante a ser levado em conta em qualquer discussão).

O lugar de fala é a posição do sujeito falante. Posição no sentido socioeconômico, cultural, cronológico, ideológico. Há aí elementos que não temos como escolher, a vida nos impõe, como onde nascemos, que língua falamos, onde crescemos, qual é a cor da nossa pele, nascemos com que sexo, quais as tendências genéticas que nosso corpo deve desenvolver, o nosso nome de batismo. Há outros que escolhemos, não completamente sozinhos, mas a partir das interações e das mediações que vamos tendo pela vida (que, também, não deixam de ser vinculados as prerrogativas que a vida nos deu de nascença), como se queremos ou não seguir uma religião, quem serão nossos amigos, se queremos comer carne ou ser vegetarianos, que música ouvir, que profissão seguir, que gênero e orientação sexual assumir.

Todas essas características, mescladas às dinâmicas sociais nas quais nos envolvemos direta ou indiretamente, nos leva a assumir uma posição social e, consequentemente, um lugar de fala. Que também não é singular, é plural, já que de acordo com a situação, com o ambiente, podemos assumir diferentes posições. E que toma corpo quando nos relacionamos com os outros, nas interações (não necessariamente presenciais, as virtuais também). Eu mesma sou mulher, mãe, irmã, filha, jornalista, acadêmica, professora, de esquerda progressista, sem contar nos elementos “natos”, sou branca, brasileira, paulista, heterossexual, nascida na zona norte, crescida num bairro de classe média baixa. Ou seja, sou uma pessoa privilegiada, se comparada a incontáveis estratos sociais, ainda que possa sofrer, por exemplo com o machismo – ou, como tem acontecido nesses tempos de vivência no exterior, de casos de preconceito ou até xenofobia por ser brasileira.

É fundamental termos clareza sobre o nosso lugar de fala. Para entender o impacto do que falamos ou do que silenciamos em cada ambiente. Para perceber nossos limites e as relações de poder que ali se impõem. Para identificar as estratégias necessárias para burlar obstáculos. Para resistir.

Uma coisa, porém, é o lugar de fala. Outra é ter espaço para falar, é ser ouvido. E há desigualdades enormes nesse sentido. Claramente, como bem falou Gê Escobar, os feminismos em geral têm muito por que lutar, mas as mulheres negras têm barreiras que são muito mais altas para vencer, como conseguir legitimidade para ocupar os media e construir suas próprias representações.

Infelizmente, no dia a dia, deixamos de lado essa reflexão. Afinal, tudo é naturalizado. O fato de mais um jovem negro ser morto e não ser destaque no telejornal do meio-dia é aceito como algo banal, enquanto o tratamento dado à morte de um jovem universitário é totalmente diferente. É a manchete do jornal. Afinal, foi-se uma vida que seria o futuro do país. Sim, mas e o jovem negro da periferia? Não tem a voz ouvida, então vira só mais um número.

E a situação se agrava sem nos darmos conta. Porque, a todo tempo, pessoas que ocupam posições mais privilegiadas tomam a palavra, utilizando a sua posição, para aprofundar tais desigualdades. É o que acontece, por exemplo, quando um professor doutor usa sua toga para acusar mulheres de praticarem um feminismo que se confunde com o nazismo; quando sujeitos poderosos dizem que não houve ditadura militar, já que houve troca de governantes; quando um cidadão, empunhado do título de filósofo, diz que feministas não sabem nada sobre mulheres, e que somente os homens heterossexuais é que podem falar sobre elas, por entendê-las melhor. Mas é também o que vemos no dia a dia, aquele mais rotineiro, em escolas em que os professores não escutam os alunos e até perseguem os que acabam sendo taxados de “alunos-problema”, só porque eles questionam o status quo e denunciam abusos; em relações de trabalho em que tudo o que a mulher diz é ignorado pelos demais homens, mesmo ela apresentando qualificações até superiores à dos demais homens à mesa; em relações familiares, quando o chefe da família ignora as vontades e as angústias dos que estão ao seu redor, simplesmente por se sentir mais importante que todos os demais, causando imensa dor.

O lugar de fala, assim, não é apenas algo pontual, a ser identificado em certas situações sociais, mas algo intrínseco ao nosso dia-a-dia, e que por isso deve ser objeto de discussão e de reflexão constante, para que não fique engessado. Acima de tudo, o lugar de fala não é algo definitivo nem uma posição intocável. Ele existe, deve ser identificado para a melhor compreensão do conteúdo da fala e de suas intenções, e pode ser confrontado, chacoalhado. Por que não? O que é próximo do que Gramsci concluiu sobre a tomada de consciência sobre a hegemonia, possível a partir da reflexão, o que pode levar a ações contra-hegemônicas. A academia é o espaço por excelência para que aconteça esse tipo de reflexão, mas não pode ser o único. Quanto mais ampla e difusa essa discussão for, melhor!